sala VIP

sábado, 28 de novembro de 2009

vida de professor



Eu tinha agendado uma prova num determinado curso da UESPI - Universidade Estadual do Piauí e, então, quando adentrei o portão principal da instituição, deparei-me com um grupo de marmanjos, quase em uníssono, gritando:
- Prova! Em grupo! Em grupo! Em grupo!
Com um envelope de papel vegetal debaixo do braço, parei, fiquei ouvindo e, quando os gritos diminuiram, com uma expressão irônica, perguntei:
- Vocês querem fazer de quatro?
Quiseram não!

a fome tem face


Chegamos, eu e um colega, num restaurante no momento em que os ponteiros do relógio, na analogia da escala do primeiro quadrante do mostrador, indicavam 13 horas e 14 minutos.
Um garoto, com uma caixa de madeira de engraxate, perguntou-me, apontando para os meus pés:
- Quer engraxar, senhor?
Como eu lavara uma topada e, portanto, rasgara o bico do sapato, apenas, automaticamente, sem observar o garoto, disse:
- Não!
Ele passou em direção a outras mesas. Fartamente, tínhamos almoçado, no entanto sobrara comida. O garoto retornou e, colocando a caixinha de madeira no chão, sentou-se sobre ela e recostou-se na parede. O meu colega o chamou. Sentou-se conosco. Os restos de comida lhe foram oferecidos. Ele ficou tão perturbado que não sabia o que pegar primeiro na mesa. Freneticamente, começou a comer com uma colher. A fome saltava dos olhos dele. De repente, largou a colher e, tomando o prato sobre as mãos, comia com gana e um prazer triste que anestesiou a minha atenção, e, portanto, fiquei a enquadrá-lo naquele instante único e particular.
Num estalo mental, meu filho emergiu à baila e, então, fiquei fixando um ponto de fuga distante encravado no limite de minha visão. No meu interior, não existia um limite, mas uma infinita instabilidade emocional embalada pela saudade dos gritos felizes do meu filho dentro de nossa casa. Nossa casa!
O garoto, com uma gula exclusiva, comia como se estivesse numa Santa Seia ou na Última Seia. Diante dos meus olhos estava um apóstulo esquelético e faminto moldado pela política obesa devoradora de sonhos e insensivelmente sarcástica.
Naquela reflexão, percebi que a fome tem face e, sorrateiramente, está nos observando com um olhar esmaecido e de súplicas.

sábado, 21 de novembro de 2009

vida de professor



Como professor substituto, eu ministrava aulas no Instituto Federal do Piauí, Campus Floriano. A disciplina era soldagem e, portanto, as avaliações foram divididas em práticas e teóricas.
Exaustivamente, tínhamos explorado as posições de soldadura (vertical, horizontal, ao baixo, no teto e circunferência), portanto, numa avaliação teórica, fiz a seguinte interrogação:
“Quais são as posições de soldadura?”
Um “estudante” respondeu:
“Em pé, sentado e deitado. Só não pode de quatro!”.

péssimo dia, vizinho!



Acordei agredido por um som brega que, escandalosamente, espantava a noite. Noite que eu tentava, abusadamente, prender debaixo de um lençol listrado e enxovalhado.
Mal humorado, fiquei equilibrando-me sobre as pernas e sentindo coceira alérgica àquelas “notas” musicais desconfortáveis espiritualmente que, como um despertador não programado, o vizinho usava para sacudir a rua.
Tomei um rápido banho e, meio despojado, ganhei a rua estreita que, beijada arrepiadamente pelo vento, quebrava a minha irritação matutina. Um cachorro desfilava elegantemente sem perceber a minha presença solitária. Todas as casas estavam de fachadas cerradas, sérias e travadas como o meu espírito errante.
A cidadezinha tremia lentamente quando um carro aparentemente perdido passava e, aos poucos, era apagado pela linha do horizonte. Tudo se mostrava irritantemente igual e a paisagem monótona tragava o meu ânimo de continuar vagando por áridas ruas mortas. Tortas e torturantes. Aproximei a linha do horizonte dos meus pés, mas não consegui arrastar com ela as pessoas que estavam do seu outro lado e me faziam sentir saudades.
Cabisbaixo, sai empurrando a linha imaginária do horizonte com a ponta do nariz até a porta de minha casa. De repente, ela fugiu assustada pelo vizinho da música brega que, com uma voz de trovão, cumprimentou-me: “Bom dia!”.

sábado, 14 de novembro de 2009

vida de professor


O semestre na Universidade Federal da Paraíba, onde eu cursava Engenharia Mecânica, se encerrara. De férias, fui visitar meus pais em Floriano (PI) e, portanto, ao chegar em casa, deparei-me com um garotinho de mais ou menos uns 9 (nove) anos de idade, oriundo da zona rural, que me esperava para ser alfabetizado. Segundo os comentários, se eu não conseguisse alfabetizar o moleque, ninguém mais conseguiria, pois, além da minha fama de inteligente e hábil professor, ele já tinha peregrinado em vários colégios e casas de professores particulares e, no entanto, não saia do rendimento zero.
De início, fiquei empolgado com a proposta, mas, em poucos minutos de tentativa, percebi que o caso era complicado: aplicava todos os malabarismos e mágicas pedagógicas, mas o moleque parecia que estava num mundo metafísico.
Depois de cinco dias de árduo e desgastante trabalho, resolvi apelar para a tradicional soletração. Abri um livro com figurinhas legendadas. Abaixo da figura de uma igrejinha, eu falei:
- Um C com A, CA; um S com A, SA. Que palavra forma?
- E o moleque, sem nenhuma cerimônia, o que me fez sentir saudades da palmatória pedagógica, emendou:
- Igreja!
Desisti.

por que enganamos as crianças?


O meu filho, que na época deveria ter 5 (cinco) anos, encontrava-se doente. Vomitava e ficava o tempo todo deitado. Ele tinha muito medo de hospital e, então, para que não desconfiasse, chamei-o para um passeio pela cidade. Esforçou-se para ficar de pé e, tentando animar-se, disse que estava pronto. Na verdade, eu o estaria levando ao HTN – Hospital Tibério Nunes, em Floriano (PI).
Com o olhar desconfigurado e derramado sobre a paisagem urbana, observava sem muita curiosidade e, em pouco tempo, arriou-se sobre o banco traseiro do carro. Chegamos ao hospital e, portanto, ficou meio agitado e perturbado: não gostava de hospital.
- Pai, o que nós vamos fazer aqui?
- Falar com o médico, filho. Depois nós vamos pra casa.
O médico autorizou a internação do meu filho.
- A mulher vai trazer injeção?
Fiquei meio confuso e inseguro no momento de respondê-lo. Por que a gente tem que enganar as crianças para confortar o nosso próprio espírito? Eu o enganei mais uma vez:
- Vai ser só uma furadinha, mas não vai doer.
Na verdade, quem doía muito era o meu coração. Ele, o meu coração, ficou tão contraído que, tenho certeza, descoloriu. Amarelou.
A enfermeira não conseguia “pegar” a veia no bracinho trêmulo. Várias tentativas... Nada! Comecei a ficar desesperado, pois ele falava chorando:
- Pai, tu disse uma furadinha. Pai, quero ir pra casa. Cadê vovô?
Naquele momento, eu desejava estar no lugar dele. Eu pensava em dizer uns palavrões pra enfermeira, mas, racionalmente, pensava: ela ficará mais nervosa. Calma. Calma. De quando em vez, eu virava as costas para aquela cena surrealista e, discretamente, enxugava as lágrimas que transbordavam dos meus olhos impávidos.
Finalmente, ela conseguiu encontrar uma veia e, logo, injetou um composto amarelado no braço imobilizado por mim. Passei a noite sentado ao lado do meu filho. Eu segurava com carinho o seu bracinho aveludado espetado por uma agulha, pois, de quando em vez, espantava-se ou, então, virava-se de lado.
Até hoje, tenho certeza, nunca senti, como naquela noite, um sentimento tão diferente e exclusivo na minha vida. Um sentimento humano e verdadeiro de ser pai.

herói censurado



Quero ser protagonista
do meu próprio viver.
Não corte o meu filme
com essa lâmina afiada
do seu olhar bandido!

sábado, 24 de outubro de 2009

vida de professor



Quase todos os professores do Instituto Federal do Maranhão, campus Zé Doca, são de outras cidades ou de outros Estados da federação, portanto, na hora do almoço, geralmente, saímos em grupo para um determinado restaurante, churrascaria ou casa de família com estatus de restaurante.
Certa feita, estávamos, eu, mais quatro professores e três servidores administrativos, em torno de uma mesa, numa casa de família, esperando o rango. O professor Antonio Vieira perguntou ao professor Moisés:
- Você gosta de feijão?
Moisés respondeu:
- Gosto! Gosto muito!
- Mentira! – disse com convicção Antonio Vieira. Se você gostasse, não comia o coitadinho!

desejo poético


Mordi a língua...
(língua portuguesa)
e não enchi a boca
de versos-desejos reversos.

já tive um coração valente



Em João Pessoa, no bairro Jaguaribe, ao lado do Centro Administrativo, cérebro do Estado da Paraíba, ficava encravada a Residência Universitária Masculina (RUM) da Universidade Federal da Paraíba; hoje transferida para dentro do campus e apresenta-se paralela ao Hospital Universitário (HU). Residiam, em média, cento e dez acadêmicos de várias áreas do conhecimento humano. Do outro lado da residência, passava a Rua das Trincheiras que é protegida, de uma profunda depressão geográfica, por uma mureta. Lá em baixo, mostrava-se uma favela.
Numa noite de natureza nervosa: chuva, relâmpagos e trovões que faziam tremer a alma do ser humano, um morador da comunidade, completamente desesperado, adentrou, mais ou menos às 22h, na RUM pedindo ajuda, pois várias casas da favela tinham sido destruídas pelo temporal. De imediato, eu e vários colegas nos predispusemos a ajudar.
Ninguém via a escadaria que dava acesso à favela, pois as águas cobriam uniformemente todos os degraus. O morador, que tinha ido pedi ajuda, guiava-nos. Descemos os degraus em forma de corrente humana: um segurava a mão do outro. As águas engasgavam-se raivosas do nosso atrevimento.
Naquela noite, ao chegar na favela, eu vi um cenário de destruição comparado aos cinematográficos. Seria difícil acreditar que ainda existissem pessoas vivas ali em baixo de tantos escombros. Tinham sido destruídas entre cinco a dez casas. Uma parte da favela ficava no flanco de um morro que, em função da tormenta, desabava em frações imprevisíveis. Pensávamos que toda a comunidade estivesse empenhada no trabalho solidário, mas fomos surpreendidos com vizinhos saqueando as casas que tinham sido destruídas, vizinhos de braços cruzados nas janelas só olhando o sofrimento dos bombeiros, vizinhos que não davam informações sobre as casas que foram soterradas, vizinhos que não sabiam de nada... vizinhos!
Usávamos sandálias comuns que ficaram, na primeira investida, afogadas na lama a mais de 60 cm de profundidade. Continuamos descalços. Uma gostosa e arrepiante gargalhada das nuvens expirou a energia elétrica. Tudo escuro. Os bombeiros ligaram um holofote (lanterna) e o feixe de luz ficava dançando entre os trabalhadores voluntários. Pisei em cerca de arame farpado, louças de vaso sanitário e o não sei o que diga a quatro. O grande receio era cair numa fossa qualquer. De quando em vez, o foco de luz era apontado para o morro. A gente olhava pro morro, que deveria ter entre quinze e vinte metros de altura, e ele agressivamente lançava, devagar e continuamente, centenas de metros cúbicos de lama sobre nós. As árvores sobre o morro estalavam-se agonizantes e, logo, o prenúncio de aumentar a tragédia era eminente.
Levantávamos os pés com dificuldades e, portanto, o trabalho começou a ficar improdutivo: dávamos um passo e, em seguida, caíamos na lama. Os objetos sepultados na lama tornam-se inacreditavelmente pesados. Não havia, para nós principiantes em salvamento, mais nada a fazer. Chegamos no limite da paciência do morro, que, imperiosamente, a qualquer momento poderia nos decretar a sentença de morte. O comandante dos bombeiros, percebendo o perigo que corríamos, agradeceu-nos e pediu que nos afastássemos: estava esperando, a qualquer momento, o deslizamento total do morro. Os bombeiros, bravamente, continuaram desafiando a morte na tentativa de salvar vidas.
Com a lama até quase à altura dos joelhos, fiquei em pé, cruzei os braços e senti o quanto que sou anódino perante a natureza. Recebia lapadas (rajadas) de vento e água na cara que, na noite sinistra, gelavam a coluna vertebral: o corpo todo tremia em convulsão muscular. Abateu-me uma estranha sensação de derrota e impotência humana. Ficamos cabisbaixos e decepcionados por não poder ajudar mais. Já era madrugada: tínhamos trabalhado motivados pela emoção. Eu trabalhei motivado por uma força que não sei explicar. Não sentia dor nem fadiga, apenas trabalhava. Mas, percebi, naquele momento, que contra a natureza não há força de vontade que vença. Conseguimos resgatar duas crianças com vida e o corpo de uma mulher.
Alguns colegas já tinham, sem eu nem perceber, ido embora. Naquele momento, éramos apenas cinco. Quando nos deslocamos rumo ao carreiro que nos conduziria à Rua das Trincheiras, uma pessoa alertou-nos:
- Não vão por aí: estão esperando vocês lá na frente... Serão assaltados. Eu não acho justo: vocês vieram ajudar a gente.
Fiquemos pasmos. Entreolhamo-nos. Mecanicamente, apenas levantamos os ombros e abrimos os braços. O nosso gesto dizia: e agora? A pessoa que nos alertou falou:
- Venham comigo, tem outro caminho por aqui.A dúvida invadiu-me. Estaria aquela pessoa falando a verdade ou estaria nos levando para os bandidos? Os colegas não refletiram sobre isso e, imediatamente, começaram a segui-la. Pulamos uma cerca, passamos por um matagal, subimos uma encosta íngrime e escorregadia e, finalmente, para o alívio geral do grupo, chegamos na avenida. O nosso guia, pelo menos naquela noite, foi uma pessoa do bem

liberdade marginal


Enforquei barbaramente o verbo,
que não é nenhum deus,
para libertar, sem sentimentos de culpa,
as minhas ideias marginais.

sábado, 17 de outubro de 2009

vida de professor



Fui aprovado num concurso público para professor efetivo do Instituto Federal do Maranhão. Exigiram, segundo uma lei não sei das quantas, uma grande quantidade de exames médicos e, também, radiológicos.
Um dos exames acusou a presença de ameba. Em São Luís, a médica do instituto receitou-me, então, SECNIDAZOL.
Ao chegar em Floriano (PI), fui à farmácia para comprar tal medicamento. A atendente falou-me:
- SECNIDAZOL, nós não temos, mas temos outro genérico, SECNIDAL, que é bom pra ameba!
Fiquei olhando, meio entorpecido, nos envolventes olhos dela e, então, disse:
- Esse não me serve, pois eu quero um remédio que seja bom pra mim e malvado para com as amebas.

o cravo social




Escravo
Ex-cravo
És cravo!

Zé Doca (MA), 2009-10-16

acrofobia: face a face com a morte



Participei de um Seminário Nacional de Estudantes de Engenharia em Belém (PA) como membro da delegação da Paraíba.
De manhã, as meninas acordavam e, sem nenhum pudor, saiam desfilando semi-nuas nos corredores da Universidade Federal do Pará em direção aos banheiros. A delegação do Rio Grande do Sul, que chegara atrasada em função da distância entre os Estados, apresentava muitas meninas altas e belas... belíssimas!! Elas sabiam que desmontavam os homens e, portanto, requebravam-se com convicção. Nós, os meninos das outras delegações, acordávamos cedo e organizávamos um “corredor polonês” do desejo contido para rastejar os olhares febris atrás das gaúchas e mineiras. Elas passavam, geralmente com a cabeça inclinada para a direita ou para a esquerda, com um olhar gracioso e um sorriso de deboche e malícia. Suspirávamos, gritávamos e aplaudíamos. Os excessos ou palavrões não eram permitidos. Éramos agraciados com cenas formidáveis.
Ao quebrar da tarde, para mirar a exuberância da natureza, os estudantes subiam numa escada, em forma de espiral, em torno de uma caixa d’água, situada nos fundos da UFPA. Depois da caixa d’água, os limites da universidade são determinados por um rio muito largo. A universidade era geograficamente beneficiada com igarapés que, durante o dia, pareciam córregos mortos: apresentavam barcos enterrados na lama juntamente com as cargas de madeira que rebocavam. No entanto, durante a noite, na ressaca do rio, os barcos e toras gigantescas de madeira ficavam flutuando como se fossem de isopor.
De quando em vez, eu dava uma escapadinha dos mini-cursos, acendia uma “brasa” e ficava “navegando”, deitado sobre uma árvore às margens do rio. Os meus pensamentos eram rebolados pelas águas pra lá e, logo em seguida, pra cá. Às vezes, eu via, muito distante, um ou outro barco rabiscando as águas do rio. Parecia um brinquedo de criança dançando no ritmo das águas. Afirmo: não era alucinação.
Certa tarde, como a caixa d’água estava extraordinária: repleta de gaúchas, mineiras, etc., resolvi desafiar o meu medo de altura, e, portanto, subi, até de forma equilibrada, a escada espiralada. Um aroma gostoso e sensível de mulher inebriou-me escada acima. Cheguei ao topo, mas não pude apreciar o cenário, pois o pânico, de chofre, invadiu-me. Todo o meu corpo foi tomado por uma estranha sensação de fraqueza e, imediatamente, se eu não me sentasse, poderia desabar caixa d’água abaixo. Não era uma atitude pusilânime, pois eu estava ali tentando mostrar para as meninas que era macho com m maiúsculo. Mesmo sentado, se eu abrisse os olhos, uma força negativa me impulsionaria para a morte. Uma estranha fraqueza me dominava de tal forma que eu não conseguia apoiar-me no corrimão da escada. Parecia que todos os meus sentidos estavam paralisados e a única opção que me restava era atirar-me no vazio. Sentia uma atração fatal pelo vazio. Não sei explicar. Fiquei num estado de demência (psicose) e o abismo era um atrativo quase irresistível. Então, fui pivô de uma das cenas mais constrangedoras de minha vida: fechei os olhos e desci sentado, escalando degrau após degrau, todo o lance de escada em torno da caixa d’água.
Não consegui superar o medo, mas, em relação à altura, multiplicá-lo, pois, quando me recordo dessa cena, sinto uma estranha sensação de leveza corpórea provocado por um anestésico mental.

piração


(trans)piração
(tô)tal
(ins)piração
(lê)tal.
Zé Doca (MA), 2009-10-16

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

vida de professor



No dia 28 de setembro de 2009, apresentei-me ao Instituto Federal do Maranhão, campus Zé Doca, para entrar em exercício como professor do ensino básico, técnico e tecnológico. O campus é pequeno, mas tem uma arquitetura visualmente agradável.
Fui bem recepcionado e, portanto, senti-me à vontade.
Um professor apresentou-me a um determinado aluno de Análise Química, eu acho:
- Este aqui é mais um professor do nosso campus. Chegou do Piauí.
O aluno, encarando-me, disse, alternando o tom de voz:
- Aqui só tá dando piauiense!?
Como não entendi se tinha ou não uma vírgula depois do verbo dar, reagi imediatamente:
- Não. Piauiensezinho tá só comendo!

(im)pulso


Não tenho
veia poética:
apenas pulso
ou impulso.
São Luís (MA), 2009

como "enlouquecer" as mulheres



A noite estava sombria e sem empolgação. Cheguei num barzinho de periferia. Puxei uma cadeira que circunvizinhava uma mesa circular e, instintivamente, sentei-me esquecido e agredido por uma tristeza mórbida.
Ao longo da noite estéril, bebi todas as cachaças e mais algumas. De manhã, o despertador do celular pulsava nervosamente no quarto e, de propósito, obrigava-me a rolar macanicamente sobre a cama desalinhada. Queria postergar, sufocando o travesseiro entre os braços e contraindo freneticamente as pernas, o momento de levantar-me. Não tolerei o insistente celular e, meio sonâmbulo, trôpego e dominado pela ressaca, levantei-me, completamente nu, e desativei o alarme eletrônico. Bocejei. O bafo fétido, vinhado e etílico invadiu o quarto. Tossi. Espreguicei-me. Abri os olhos e vi as roupas jogadas no chão, as gavetas do guarda-roupa abertas, a cueca empendurada na maçaneta da porta, um pé de sapato no Oiapoque e outro no Chuí. Com dificuldades, localizei a chave do banheiro. Abri a porta do quarto, caminhei apoiando-me nas paredes dos corredores, entrei no banheiro e, como um bambu açoitado pelo vento, comecei, com os olhos semi-fechados, a fazer xixi. A tampa da bacia sanitária ficou completamente molhada com um líquido amarelo, salgado e morno. Não dei descarga. Uma poça no chão acusava: eu errara o alvo. Virei-me e, colocando o creme dental na escova, comecei a esfregar os dentes. As bordas da pia de louça ficaram completamente pulverizadas de branco. Desci o primeiro lance de escada e, no último degrau, sentei-me: o cérebro não conseguia coordenar a massa corpórea. Com os olhos fechados e uma ânsia incontida de vômito, coloquei a cabeça entre as mãos. O intestino entrou em frenéticas convulsões e obrigou o meu corpo a arriar pra trás. Deitei-me sobre os degraus. Depois de algum tempo, cuja cronometragem eu não sei precisar, levantei-me e desci o segundo lance de escada. Ganhei a sala, que é conjugada com a cozinha, e marquei passos com dificuldades. Coçando os testículos gostosamente, abri, com o cotovelo do braço direito, a geladeira. Olhei para um lado e pro outro e, então, tomei água diretamente na boca da jarra. Animalescamente, arrotei. Atirei a jarra vazia dentro da geladeira. Fui ao armário. Tomei cinqüenta ou cem gotas de dipirona sódica. Não tive paciência de contar gota após gota. Apenas estimei a quantidade e bebi. Subi os dois lances de escadas. Adentrei no banheiro. Tirei a roupa e deixei-a descansando sobre a bancada, em cima dos produtos de higiene. Tomei um banho prolongado. O banheiro ficou todo molhado e com espumas de sabonete protex escorrendo pelas paredes. Nem liguei. Enrolei-me na toalha e fui pro quarto. Joguei a toalha, completamente encharcada, num dos quadrantes da cama, e, físico e mentalmente esgotado, atirei-me nela. Dormi o dia inteiro.
Infelizmente, mulheres, esses maus comportamentos são típicos e intrínsecos dos homens, portanto, peço-lhes que tenham, na convivência cotidiana, paciência com os seus “príncipes encantados”.
Zé Doca (MA), 2009

vocábulos mortais


Não brinco
de roleta russa
com as palavras:
podem detonar
a minha lógica.
São Luís (MA), 2009

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

vida de professor



Pedi demissão de meu primeiro emprego em um Laboratório Industrial Farmacêutico e, portanto, fui fazer a minha inscrição para concorrer a uma vaga de professor na Universidade Estadual do Piauí, campus de Floriano (PI). A universidade não conseguira professores licenciados em matemática na cidade e, portanto, publicou um aditivo ao edital onde os engenheiros, de uma forma em geral, poderiam concorrer às vagas. Foi aí que, como engenheiro mecânico, tive a liberdade de concorrer.
Ao chegar na sala onde eram feitas as inscrições, a própria diretora do campus estava efetetuando-as. Fiquei em pé com um envelope de papel vegetal amarelo debaixo do braço direito, cheio de documentos: currículo, diploma, etc. Como ela, a diretora, não me dava a mínima atenção, falei:
- Gostaria de fazer a minha inscrição para concorrer às vagas de matemática.
Ela olhou-me com desprezo, indignação e recriminação. Olhou-me novamente e, então, disse:
- A inscrição é só pra pessoa formada!
Disse eu:
- Sim, mas eu...
A diretora levantou-se e, energeticamente contraíndo os músculos do rosto, falou, aspergindo gotículas no meu rosto e deixando as palavras assoviarem entre os dentes:
- Eu disse pra pessoa FOR-MA-DA, isto é, que tenha curso SU-PE-RI-OR!!!
Pensei em dizer que eu não estava ali fazendo teste de surdez, mas tentando concretizar uma inscrição para um concurso público. Não disse nada. Dei um passo pra trás e, limpando, com o dorso da mão esquerda, as gotículas de saliva sopradas no meu rosto, entendi, desde então, que, mesmo com esta cara de pobre que tenho, não estava representando bem a classe dos professores.

futuro


Além da carne,
os ossos vendidos
à materia orgânica
pelo tempo. Tem pó!
João Pessoa (PB), 1992

O engenheiro que gostava de sombra e água fresca



Ao concluir o curso de Engenharia Mecânica na Universidade Federal da Paraíba, eu estava completanente exausto e nervoso em função das noites mal dormidas e incitadas pelos coquetéis de café, guaraná em pó, coca-cola, etc. Parecia que eu tinha saído das profundezas do céu.
No estado em que eu me encontrava (arrepiado, magro, assustado, esquálido e fantasmagórico) jamais seria aprovado, por mais simples que fosse, numa seleção de pessoal de qualquer empresa, então, com o intuíto de recuperar-me, tomei a decisão de passar uns 20 (vinte) dias com os meus pais na cidade de Floriano (PI).
Depois de uns 5 (cinco) dias que eu estava no maior "love" com a rede: só embalando-me e, em seguida, dormindo, comecei a levar "fisgadas no fígado": "Sim, Genésia, e agora a pessoa se forma é pra ficar deitada dentro da casa dos pais?" Genésia é a minha mãe. "Genésia, minha filha, ouvi dizer que o seu filho chegou... Ele já está trabalhando?" Eu ficava só me contorcendo dentro da rede e sentindo as chicotadas verbais a "queimar" o meu orgulho. Já ficava sobressaltado e nervoso quando ouvia passos de visitas: só chegavam pra me detonar! A rede ficava estática e o meu coração sozinho me denunciava que eu estava dentro do quarto. O que falavam lá em casa era um drinque perante os comentários feitos nas ruas: "Esse miserável de Genésia não quer é trabalhar!" "Esse safado terminou curso de merda nenhuma!" "Um rapaz forte e sadio e, no entanto, fica sendo segurado pelo pai, coitado, que é aposentado!" "Eu já sabia que ele estava lá em João Pessoa só bebendo cachaça!".
A gente diz que não liga para o que o povo fala, mas, naquele período, percebi que não é verdade: internamente a pessoa fica extremamente ferida. As críticas destrutivas estavam deixando-me mais extenuado do que a conclusão do curso de engenharia. Confesso, agora, que entrei em desespero e, então, comecei a procurar alguma coisa pra fazer. Não importaria o quê! Eu queria era mostrar que estava trabalhando.
No Laboratório Industrial e Farmacêutico Sobral, um chefe de setor, sem ao menos encaminhar-me ao departamento competente, começou a entrevistar-me:
- O que um engenheiro mecânico faz dentro de uma indústria de remédios?
Como era que iria saber se eu nunca tinha entrado numa indústria química? Minha resposta foi óbvia:
- Sei não, senhor!
Ele ficou a olhar-me com uma cara de desdém e, então, disse=me:
- Passe aqui na próxima semana: eu vou falar com o dono do laboratório.
Pelo menos uma promessa, pensei. Foi a semana mais longa de minha vida. Fui dominado pela ansiedade e, paralelamente, por uma euforia reprimida.
No dia e hora marcados, eu estava lá. O chefe de setor falou-me:
- O dono disse que não pode pagar mais ninguém aqui... se você quiser trabalhar de graça, então fica aí!
Aceitei na hora. Quinze dias depois, eu estava com o meu primeiro emprego com carteira de trabalho assinada.

Menina-moça

Não uso camisinha
no meu coito poético:
tira a sensibilidade dos versos.
A poesia virgem e inocente
requebra-se afrodisiacamente
entre as quatro paredes
do meu quarto agressivo
(motel de terceira classe),
despertando o meu instinto
animalesco e afável.
Amarrotamo-nos.
Lambuzamo-nos. Não assumo.
Depois, visto a poesia
(completamente saciada)
com uma gramática
bem curtinha... curtinha
(mostrando o fundo do verbo
e as frases roliças)
e ponho-a no olho da rua.
João Pessoa (PB), 1992

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

vida de professor

A Universidade Estadual do Piauí, campus de Floriano, tinha apenas um curso: Administração de Empresas. Alguns anos depois, foi implantado o curso de Ciências Biológicas e, desde então, outros cursos surgiram, precisando, inclusive, ampliar as instalações físicas do campus.
Nessa época, os alunos veteranos aplicavam alguns trotes nos calouros ou bichos ou feras, etc. Os trotes eram sadios: um veterano entrava numa sala qualquer apresentando-se como professor e ministrava uma "aula" qualquer ou, então, pedia uma quantia em dinheiro acompanhada de uma foto para, segundo ele, confeccionar as carteiras estudantis. No dia seguinte, num mural qualquer, as fotos estavam coladas numa cartolina onde se lia:"Agradecemos a vocês pela cervejada de ontem à noite".
Pois bem, no primeiro dia letivo, entrei numa sala de calouros de Matemática. Apenas três alunos estavam conversando na sala e, no entanto, quando comecei a apagar o quadro, saíram olhando-me de soslaio. Pelo canto do olho percebi, pelas expressões de reprovação que me dirigiam, o que pensavam:"Acha que nóis é besta!"
Algum tempo depois, ouvi alguém falando no corredor:
- Vocês não vão assistir aula?
Um calouro disse:
- O professor ainda não chegou! Tem só um "neguim do cabeção" escrevendo umas besteiras no quadro.
Uma pessoa foi até a porta da sala, não olhei quem era. Depois ouvi:
- Este aí é o professor!
Sorrateiramente, os alunos, um a um, foram entrando na sala. Balançando as pernas, fiquei sentado sobre a mesa, só observando. Quando todos se acomodaram, eu, com uma expressão pesada e um olhar congelado sobre a turma, disse:
- Neste primeiro momento, gostaria de apresentar-me: meu nome é Neguim do Cabeção e estas besteiras que estão escritas no quadro é o conteúdo de Cálculo.

infinito


As marcas dos pneus,
vistas pelo retrovisor,
na epiderme da pista,
machucavam minha saudade.
O painel acusava:
nunca mais eu voltaria
àquelas curvas morenas.

João Pessoa (PB), 1993

despedida


Fui estudar em Teresina. Hospedei-me na casa do irmão Ribeiro e da irmã Silvana, que são da mesma doutrina dos meus pais: Adventista do Sétimo Dia. Pensava em fazer o vestibular na Universidade Federal do Maranhão, em São Luís.
No colégio, conheci uma garota. Era uma morena, de cabelos pretíssimos e escorridos, de pernas bem torneadas e de seios pequenos. À tarde, quando terminavam as nossas aulas, enfurnávamos, eu e ela, numa biblioteca municipal, no centro da cidade, para explorar a Literatura Nacional. Li quase todos os escritores piauienses. Aplaudi O. G. Rego de Carvalho. De quando em vez, o vigilante nos surpreendia:
- É proibido namorar aqui dentro!
Tinha vontade de dizer uns palavrões...mas... Tudo bem. Ele não tinha culpa: cumpria as normas da biblioteca.
Na época da inscrição pro vestibular maranhense, levei um tremendo azar: enviei os documentos incompletos e, portanto, não fui inscrito.
Saí desolado pra ir, pela última vez na minha vida, assistir aulas naquele colégio: tinha que retornar pra Floriano. Para tudo, olhava desconsolado. O silêncio pairava sobre o mundo: não ouvia barulho. Eu matutava mergulhado num outro mundo distante... o mundo interior. Entrei num ônibus e não senti a presença de ninguém. Viajava sozinho. Cheguei ao colégio. Os colegas não notaram a minha indiferença. A morena olhava-me de soslaio, mas não dizia nada. Eu também não. Pouco ouvíamos, eu e ela, o que o professor de Biologia falava. Eu tinha os meus motivos, ela deveria também ter os dela, ou, então, o que achei provável, estava preocupada comigo. Não sei. Sinceramente, não sei.
Terminou a segunda aula. Alguém me pediu algumas explicações sobre trigonometria: respeitavam-me na turma. Eu disse:
- Depois!
Depois? Quando? Engraçado, eu não tinha coragem de despedir-me da turma. O professor de Química ainda não entrara na sala. Pensei várias vezes em levantar-me, ir à frente e fazer uma saudação aos companheiros. Não consegui. "Depois!" fiquei inquieto. Impaciente. Ao meu lado, a morena, que não desviava os olhos de mim, perguntou-me:
- O que você tem?
- Ham?
Repetiu a pergunta.
- É...nada!
- Como nada?
Eu usava um anel dela. Naquele momento, lentamente, tirei o anel do dedo anular da mão direita e estendi-lhe, preso entre o anular e o polegar da mão esquerda. Desviei os olhos. Fixei-os na fórmica azul da cadeira, onde eu desenhara uma casinha, alguns coqueiros, uma cerca, um sol por detrás da casinha e uma longa estrada cheia de pegatas. Uma longa estrada...
- O que significa isto?
Fiquei pasmo. Boquiaberto.
- Ham?
Repetiu a interrogação. Respondi sem convicção:
- Não gosto de recordações...
- Ah!... Eu também não gosto...
Ela não estava entendendo o que estava se passando. Não gosto de recordações, mas aquele anel quase me fez chorar. A casinha, uma longa estrada...
- Você desenha bem.
Fiquei calado.
Com os olhos fixos na longa estrada, disse eu:
- Se em algum momento eu lhe feri, perdoe-me. Foi legal.
Um pouco indignada, levantou a cabeça e, jogando os cabelos pro lado direito, sorriu-me desconfiada. Incerta. Insegura. Meio trêmulo, levantei-me e, dobrando o caderno em forma de tubo, afastei-me devagar, devagar... No meio da sala, rodei nos calcanhares e, meio sem graça, acenei pra ela. Estava imóvel. Pasmada. Baixou a cabeça. Não sei se chorou... não sei. Ao sair na porta, alguém, de dentro da sala, interrogou-me:
- Já vai?
Era uma colega. Forcei a fala:
- É... estou de partida.
As lágrimas despencaram-me queixo abaixo. Limpava os olhos como se tivesse caído alguns aerodispersóides dentro deles. "Não gosto de recordações". Talvez fosse verdade: nunca mais tive notícias dela. Naquele momento, tudo acabara entre nós. Eu disfarçando que tinha ciscos nos olhos e ela, com os cabelos a cobrir a face, rabiscando o caderno.

João Pessoa (PB), 1992

insônia


A noite patética
transborda sem lucidez
pela janela da vida
e eu não consigo
compactar verbetes
para remendar o poema.
Sem pé e sem cabeça,
o poema dá pontadas
na janela da alma
que é muito apertada
para passar meus desaforos.
Apenas, de quando em vez,
dou uma cuspida tímida
na cara do mundo.

João Pessoa (PB), 1993

terça-feira, 8 de setembro de 2009

vida de professor

Como eu chegara de Teresina completamente na pindaíba e era o início do mês da janeiro, fui até ao Colégio Dinâmico, onde eu ministro aulas, e pedi ao diretor, o professor Val, que me pagasse o 13º (décimo terceiro) salário. Naquele momento, a contabilista do colégio adentrou na sala e, então, o diretor, referindo-se a liberação de um dinheirinho pra mim, falou:
- Fulana, dá um "negocinho" aí pra Antonio José!
A contabilista estava meio distraída e, por impulso, respondeu:
- O meu mesmo não! Se você quiser, dê o seu!

metamorfose



No princípio, eu era revolucionário de mesa de bar e meu espírito pairava sobre a esperança de transformar o Mundo.
Eu, jovem rebelde, encharcava a carne, cobertura lubrificada dos ossos, com cachaça, nos bares marginais da periferia da cidade mórbida.
O que se referisse a levante popular, agradava-me. Sonhava em aprender táticas de guerrilha em Cuba, disputava os autores censurados pela ditadura militar, decorava vocábulos rebuscados e mergulhava nos prostíbulos noturnos, onde os jogos de luzes multicolores embaçavam os meus olhos de pseudo-intelectual e as meninas de programa, semi-nuas e cheias de ornamentações desprezíveis, requebravam-se nos corredores estrangulados e asquerosos.
A viatura da polícia, quando estancava no beco de prostituição, obrigava-me a refugiar, com a primeira garota livre, num cubículo qualquer, onde uma luz vermelha enchia-me de tédio. Meio desolado, olhava ao meu redor: uma cama, coberta com um lençol listrado, uma mini-penteadeira, uma toalha e uma bacia cheia de água, inserida no ângulo reto das paredes, logo atrás da porta. A garota, geralmente embriagada, ficava a falar asneiras e, sem nenhuma sensualidade, depois de jogar as roupas num canto qualquer, interrogava-me: "Com luz ou sem luz?"
Achava-me diferente, no entanto, para minha tristeza, não inovei nada: tudo que pensei, falei e fiz, já tinha sido pensado, falado e feito. E o pior, com muito mais eficiência e originalidade.
Em dezembro de 1991, quando fui visitar, num recanto qualquer lá do Piauí, a minha cidade natal, deparei-me, num bar de pariferia, com um grupo de jovens "revolucionários". Discretamente sentado numa mesa solitária, fiquei a pensar na minha geração que, como mágica, debandou-se nas ruas da vida e da morte e, portanto, nunca mais terá a oportunidade de sentar-se na mesma mesa.
Naquele momento, como não poderia castrar os sonhos dos jovens, paguei a conta e, no brilho da rua, saí a olhar, com as mãos afogadas nos bolsos, a lua que, tenho certeza, num futuro bem próximo, se esconderá no horizonte daquela moçada. Era apenas uma fase da vida... uma fase.
João Pessoa (PB), 1992

vi, vivi e vegetei


No princípio, você.
No meio, vodca.
No fim, vômito.
Os três vês do fracasso!
Belém (PA), 1989

terça-feira, 1 de setembro de 2009

vida de estudante



No meu primeiro ano primário, a professora disse pra mamãe que eu estava fraquíssimo na leitura e, assim, necessitando de algumas aulas particulares - ministradas por ela, professora. Mamãe aceitou a proposta.
A professora soletrava:
- Ca, ce, ci, co, cu.
E imperativa:
- Repete!
Eu:
- Ca, ce, ci, co...
Não soletrava o c com a última vogal nem que me matasse. Ela insistia:
- Repete!
- Não, não e não!
Entortou o beiço e, relaxando-se:
- Por que tu não soletras c-u?
- porque mamãe disse-me assim: "não diga nome feio".
Cheguei em casa e, meio constrangido:
- Mãe, não vou mais prá aula!
- Por quê?
- A professora fica só dizendo saliências.

amor secreto



No primeiro ano de escola, geralmente, as exceções são raras, temos uma história de amor marginal e platônico para narrar. Às vezes, apaixonamo-nos pela professora ou, então, como foi o meu caso, pela garotinha mais dengosa e cortejada da classe.
O arrebentar multicolor de cada manhã era o desabrochar de uma nova flor perfumada e diferente que eu, afogado na timidez, nunca tive a ousadia de dedicar-lhe. As cores do mundo eram exclusivas: somente eu poderia definí-las no meu secreto poema. Ninguém via o verde como eu o via. Ninguém.
A maior melancolia era eu ir para casa e a maior felicidade, retornar, bem cedinho, à escola. Ficava a olhar a rua, sentado sobre a calçada alta da escola, mas, como de praxe, a sineta tocava e ela não chegava. Meia hora depois, a mãe dela, segurando-a pela mão, tomava a porta da classe. O meu comportamento abalava-se: os olhos dilatavam-se, as mãos suavam, o coração queria estourar o peito e o corpo tremia. A felicidade inflava-me tanto que, como um ser sobrenatural, me sentia flutuando sobre a carteira. Pelo atraso, a mãe dela pedia desculpas a professora polivalente e, em seguida, divagava sobre assuntos banais, beijava a face da filha e retirava-se. Com a blusa branca, cujo bolso havia grafado, de forma elíptica, a sigla EMGV - Escola Municipal Doutor Getúlio Vargas, e a saia azul-ferrete toda rodada de pregas, ela entrava requebrando-se, toda faceira e cheia de si, na classe do Primeiro Ano-A. As carteiras eram coletivas e, portanto, para roubar o seu aroma embriagador, sentava-me ao seu lado. Em cada respiração, o fôlego da vida fazia pulsar o meu desejo de abraçá-la. Era a menina mais perfeita sobre a face da Terra. Que mundo fantástico; que Sol brilhante; que flor indescritível; que escola bacana...
Na hora do recreio, solitário numa calçada qualquer, ficava, todo amargurado de ciúmes, a vigiá-la brincando com um grupo de colegas. O tamarindeiro, que ficava atrás da escola, rebolava alegre nas manhãs piauienses de sol quente e ventania fastidiosa.
O golpe mais pesado na minha vida nessa época aconteceu quando, numa manhã chuvosa de outubro, a mãe dela, depois de conversar algumas futilidades com a professora, disse que, no ano seguinte, iria transferí-la para outra escola. Quase quedei chorando defronte daquela mulher, mãe de minha musa, para pedir-lhe que não fizesse aquela transferência.
Mergulhei numa grande depressão ao vê-la mudar-se de escola, no ano seguinte, sem nunca, ao menos uma vezinha só, ter pronunciado, com aqueles lábios poéticos, o meu nome. Para ela, nunca existi. Chorei as mágoas da indiferença.
Floriano (PI), 1985

pernas, maçã e pecado


Para Elaine, uma paraibana arretada
Insiro a mão audaciosa
entre os substantivos
(proibidos no Éden)
da menina-fantasia
que se contorcendo esquecida
avessa a alma-prazer
nos versos amarrotados
João Pessoa (PB), 1991

namoro na esquina




À flor da pele
o beijo poético ardia.
E no ângulo reto do muro
ficará, para sempre,
a nossa febre.
João Pessoa (PB), 1991

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Vida de estudante



No ginásio, envolvi-me com uma turma que não gostava de estudar. O pessoal era muito brincalhão, fanfarrão, zombador, etc. Portanto, constantemente a gente estava sendo punido pela direção do colégio com uma suspensão após a outra.
Eu já andava com vergonha de chegar em casa com a seguinte comunicação para os meus pais: "Seu filho só assistirá às aulas mediante a sua presença na secretaria da escola".
Certa vez, como faltara giz na aula de matemática, para ser gentil, fui buscá-lo. Ao chegar na secretaia, antes de eu dizer alguma coisa, a diretora, sem nenhuma justificativa, disse-me:
- Não toma vergonha mesmo, heim? E concluiu com raiva: - Três dias de suspensão!!

o carneirinho vermelho



Antes do Sol ferir as folhas com seus raios, fazendo-as chorar o orvalho noturno, acordei. À distância, ouvia, em alguma casa da vizinhança, os gemidos de um pilão. A noite ainda se negava a ir embora e os raios de uma lamparina espremiam-se pelas frestas da janela do quarto onde eu dormia e, portanto, fulminavam a minha rede. Insistentemente, uma cabra balançava o chocalho, preso por uma amarra no seu pescoço, na malhada da porta da fazenda. Fora de casa, meu pai e minha mãe, bem baixinho, falavam coisas ininteligíveis. Puxei a correia de couro curtido e abri a porta, que se espreguiçou estalando-se: as dobradiças mal sentadas e sem lubrificação rangiram dolorosamente. Ganhei a sala, que, como todo o padrão da região, não tinha paredes. Na entrada, apenas um peitoril onde os visitantes descansavam gibões, perneiras, selas, amarras com chocalhos, chicotes, peias, chapéus, etc. Debaixo de um umbuzeiro, bem na frente da casa, minha mãe segurava uma lamparina e uma cuia. Meu pai, na maior naturalidade, puxou uma faca, de doze polegadas, da bainha que, brilhando o gume afiado à luz da lamparina, descreveu uma parábola no ar e foi enterrada no pescoço de um carneiro. Na minha inocência de criança, não entendia nada daquele ritual macabro. Um líquido viscoso e vermelho começou a escorrer pelos pêlos do carneiro. A minha mãe, rapidamente, colocou a cuia para aparar o líquido de fácil coagulação. Aquele líquido encarnado foi muito agressivo a minha estrutura psicológica: eu não sabia que por detrás daquele pêlo tão branco se escondia uma cor tão forte. Ninguém nunca me falara! Não entendia, também, por que papai fez aquilo. Ele mesmo me ensinara: "Olha o carneirinho, filho! Carneirinho!" E carneirinho era criado para ser perfuro-cortado com faca? Eu não tinha a mínima ideia do que significava o substantivo MORTE. Mesmo assim, naquele momento, pressenti que algo, nunca visto antes por mim, estava acontecendo. E, então, senti um filete de morte, carregada por uma brisa geladíssima, ligando-me àquele líquido. Uma sensação de mal estar e frio. Algo que eu não via, mas embriagava o meu ser. Uma coisa identificável: nunca mais foi preciso alguém dizer-me que existe a morte. Ela estava ali, na minha cara! Ela era aquele cheiro forte de sangue e mijo. Era aquela faca vermelha com uma biqueira na ponta. Era o carneirinho esticado pelas patas no umbuzeiro. Tudo era a morte. Não suportei ficar de pé com o cheiro de morte me sufocando e, portanto, caí sobre os calcanhares e fiquei recostado sobre os troncos de carnaúba que formavam o peitoril. Tremia. O queixo batia. O filete de morte percorria a minha espinha. Uma ânsia de vômito dominava-me. Minha mãe, percebendo-me, abandonou a cuia e correu ao meu encontro. Levou-me pro interior da casa e não deixou que eu visse e sentisse mais a manifestação da morte naquele terreiro. No entanto, pro resto de minha vida, ficou o estigma: não tolero ver sangue.
Floriano (PI), 1984

sábado, 22 de agosto de 2009

diário secundarista

Em memória de Espedito França Júnior e José Albino



No segundo grau,
todos respondíamos, um a um:
PRESENTE!
Hoje, alguns não respondem
e ninguém (ninguém!)
pode justificar as ausências
ou disfarçar a voz
para ludibriar o professor,
pois eles foram para a Universidade Eterna.
João Pessoa (PB), 1992


vida de professor



Certo dia, entrei numa sala de Informática da UESPI - Universidade Estadual do Piauí, para ministrar uma aula de cálculo. Dois alunos conversavam banalidades o tempo todo. Não estavam nem aí para minha exposição entusiasmada do conteúdo e, paralelamente, incomodavam os outros que queriam aprender um pouco do assunto.
Parei a aula e fiquei de braços cruzados, fixando os dois alunos. Nada. Continuavam tagarelando. Então, chamei a atenção deles e comecei a falar das dificuldades cotidianas para a inserção de profissionais no mercado de trabalho e, por tabela, "batia" verbalmente nos dois.
Um dos alunos, chamado Leonardo, achando-se ultrajado, pediu para falar e, então, com uma maneira sagaz e eficiente de depreciar-me e zombar do ofício de professor, disse-me:
- Antonio José, se eu não arranjar nada para fazer na vida, então eu virei dar aulas nesta merda aqui...

o menino de óculos



Depois de uma semana de intensa correria, eu estava num estado de profunda abstração - completamente esquecido na poltrona do ônibus, a observar a paisagem urbana da cidade de Belém (PA). Resgatava fragmentos da memória que me marcaram entre os terráqueos.
Numa viagem de ônibus coletivo, pelo perímetro urbano, dezenas de pessoas sentam-se ao nosso lado. Como isso é rotina, não nos preocupamos em memorizar as fisionomias dos passageiros.
De repente, despertei e, ao girar a cabeça pro lado direito, meu olhar encandeou-se com o de um garotinho, de aproximadamente 6 (seis) anos, que, bem de pertinho, me encarava. Ele apertava os olhos e fazia um grande esforço para enxergar-me através de lentes espessas. Parecia que eu me tornara um ponto de fuga. A armação grotesca do óculos amassava o rosto do garotinho, deformando-o. Quando ele explorou cuidadosamente a minha face, desinteressou-se pela minha caricatura (esboço inexpressivo e de mau gosto). Com minunciosidade, olhava todas as formas geométricas. Queria explorar tudo o que estivesse ao alcance de suas mãos.
De imediato, bate-me forte uma depressão e, portanto, sinto-me a contrair dentro do corpo. Sou metamorfoseado numa criança. Então, vejo o quanto o meu corpo é grande: minha alma fica folgada dentro dele. Só eu sei o peso que ele me provoca para ser arrastado pelas vielas e avenidas da vida. O bigode pesado, a radiação serena do olhar, a postura reflexiva e o sorriso reprimido, já registrei no cartório do cotidiano. São patentes implagiáveis.
Uma senhora, num tom amável, chamou o garotinho. Como não fui indiferente ou discreto com a presença dele, virou-se e, com a mão dançando no ar, disse-me: "Até logo!" Saiu apalpando as poltronas do ônibus com dificukdade. Enterrado dentro do uniforme escolar, com aquele óculos no rosto, parecia um intelectual. Fiquei preocupado com a barreira que existia entre ele e o mundo: as lentes espessas.
Belém (PA), 1989

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

cuidado: veneno

Colocaram a minha caveira,
como timbre de advertência,
nos rótulos de veneno.
Na madrugada trêmula,
tenho um medo inefável
dos músculos sedentários
destamparem a lata burlesca
e me obrigarem a mastigar,
em forma de pó, a morte.
João Pessoa(PB), 1992

terça-feira, 18 de agosto de 2009

vida de professor



Numa determinada turma de Licenciatura Plena em Matemática da UESPI - Universidade Estadual do Piauí, campus de Floriano (PI), tinham dois alunos vibradores com o curso e, portanto, faziam questão de resolver ou tentar resolver aqueles problemas que a gente gosta de dizer que nem o diabo sabe solucioná-los.
Pois bem, certo dia entrei na sala, às 8:00h da manhã, empurrado pela ressaca da noite anterior. Notei que os dois estavam eufóricos e olhavam-me com um ar de quem dizia: "hoje nós vamos acabar com você".
Mal apaguei o quadro, um dos alunos, esfregando as mãos, disse-me:
- Antonio José, passamos a noite estudando e não conseguimos resolver a questão número tal!
Pensei: "é bomba, tô ferrado!".Então, iluminado pelos deuses do álcool, brilhou-me a resposta:
- Ora, meu amigo, você que passou a noite toda estudando não conseguiu resolvê-la, imagine eu, coitado, que passei a noite toda bebendo cerveja!!!

a janela



É noite. A febre das paredes do apartamento irrita-me. Meu corpo incha nesta estufa numerada - aptº 202. As paredes comprimem-me. Então, a minha solidão começa a escorrer pelas frestas da porta e pelos recortes venezianos da janele, a fluir sem viscosidade para a rua.
Meu vulto esquipático e frágil desce a escadaria. Ganho a rua. O vento esvoaça a minha camisa de tecido ordinário. A rua deserta acusa-me: sou um perfeito marginal errante. Paro diante de um edifício: uma janela, no décimo segundo andar, brilha solitária. O prédio espeta o espaço cinzento e apoético e as suas arestas afiadas cortam, neste instante, a minha solidão. A sombra do prédio estendida no chão não mostra a janela solitária, no entanto, independente da angústia que pode estar se escondendo atrás dela, continua alegre, quiçá gozando do desespero humano. Estou envergonhado. Encaro a janela como uma nova abertura para a vida; uma nova esperança que, nas noites sombrias, ficará sorrindo da cidade. Cidade que, na sua estaticidade, fica a consumir, geralmente de emboscada, a vida humana.
Estou cansado. É noite.
Campina Grande(PB), 1985

Acidente na Rua das Trincheiras


A vida coagulada
rente ao meio-fio
não precisava de coração.
O crânio esmagado
no asfalto melancólico
deixou os dentes
escorrer pela boca...
Alguém vomitava
da cena macabra.
Para um anônimo, vítima do trânsito de João Pessoa.
João Pessoa (PB), 1991

sábado, 15 de agosto de 2009

o remédio do futuro



O remédio do futuro chegara. Não se podia duvidar. Papai foi o primeiro a ir ao consultório. Ele estava com dores no espinhaço e com ataques de nervosismo. O médico lhe receitou "polivitaminas". A minha tia, que estava no mês de parir, foi a segunda a receber o mesmo remédio. Luzinete, minha irmã, como rangia os dentes durante a noite, não escapou de ganhar a fórmula milagrosa: "polivitaminas". Eu também sentia-me meio doente: dor na barriga, dor na cabeça, anemia, fastio e outra porrada de incômodos, então fui ao INPS. Quando entrei no consultório, o médico já estava rabiscando a receita, e, antes de eu falar o que sentia, disse-me:
- Passe na farmácia do posto e pegue esse remédio.
Li a receita: "polivitaminas".
Fiz uma súplica ao médico:
- Doutor, o senhor não pode indicar-me outro remédio?
- Não. O estoque de "polivitaminas" está muito grande e vencerá no próximo mês. Temos que empurrar tudo ainda este mês...
Publicado no jornal O Dia. Teresina (PI), 03 de agosto de 1985
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...