sala VIP

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

vida de professor

A Universidade Estadual do Piauí, campus de Floriano, tinha apenas um curso: Administração de Empresas. Alguns anos depois, foi implantado o curso de Ciências Biológicas e, desde então, outros cursos surgiram, precisando, inclusive, ampliar as instalações físicas do campus.
Nessa época, os alunos veteranos aplicavam alguns trotes nos calouros ou bichos ou feras, etc. Os trotes eram sadios: um veterano entrava numa sala qualquer apresentando-se como professor e ministrava uma "aula" qualquer ou, então, pedia uma quantia em dinheiro acompanhada de uma foto para, segundo ele, confeccionar as carteiras estudantis. No dia seguinte, num mural qualquer, as fotos estavam coladas numa cartolina onde se lia:"Agradecemos a vocês pela cervejada de ontem à noite".
Pois bem, no primeiro dia letivo, entrei numa sala de calouros de Matemática. Apenas três alunos estavam conversando na sala e, no entanto, quando comecei a apagar o quadro, saíram olhando-me de soslaio. Pelo canto do olho percebi, pelas expressões de reprovação que me dirigiam, o que pensavam:"Acha que nóis é besta!"
Algum tempo depois, ouvi alguém falando no corredor:
- Vocês não vão assistir aula?
Um calouro disse:
- O professor ainda não chegou! Tem só um "neguim do cabeção" escrevendo umas besteiras no quadro.
Uma pessoa foi até a porta da sala, não olhei quem era. Depois ouvi:
- Este aí é o professor!
Sorrateiramente, os alunos, um a um, foram entrando na sala. Balançando as pernas, fiquei sentado sobre a mesa, só observando. Quando todos se acomodaram, eu, com uma expressão pesada e um olhar congelado sobre a turma, disse:
- Neste primeiro momento, gostaria de apresentar-me: meu nome é Neguim do Cabeção e estas besteiras que estão escritas no quadro é o conteúdo de Cálculo.

infinito


As marcas dos pneus,
vistas pelo retrovisor,
na epiderme da pista,
machucavam minha saudade.
O painel acusava:
nunca mais eu voltaria
àquelas curvas morenas.

João Pessoa (PB), 1993

despedida


Fui estudar em Teresina. Hospedei-me na casa do irmão Ribeiro e da irmã Silvana, que são da mesma doutrina dos meus pais: Adventista do Sétimo Dia. Pensava em fazer o vestibular na Universidade Federal do Maranhão, em São Luís.
No colégio, conheci uma garota. Era uma morena, de cabelos pretíssimos e escorridos, de pernas bem torneadas e de seios pequenos. À tarde, quando terminavam as nossas aulas, enfurnávamos, eu e ela, numa biblioteca municipal, no centro da cidade, para explorar a Literatura Nacional. Li quase todos os escritores piauienses. Aplaudi O. G. Rego de Carvalho. De quando em vez, o vigilante nos surpreendia:
- É proibido namorar aqui dentro!
Tinha vontade de dizer uns palavrões...mas... Tudo bem. Ele não tinha culpa: cumpria as normas da biblioteca.
Na época da inscrição pro vestibular maranhense, levei um tremendo azar: enviei os documentos incompletos e, portanto, não fui inscrito.
Saí desolado pra ir, pela última vez na minha vida, assistir aulas naquele colégio: tinha que retornar pra Floriano. Para tudo, olhava desconsolado. O silêncio pairava sobre o mundo: não ouvia barulho. Eu matutava mergulhado num outro mundo distante... o mundo interior. Entrei num ônibus e não senti a presença de ninguém. Viajava sozinho. Cheguei ao colégio. Os colegas não notaram a minha indiferença. A morena olhava-me de soslaio, mas não dizia nada. Eu também não. Pouco ouvíamos, eu e ela, o que o professor de Biologia falava. Eu tinha os meus motivos, ela deveria também ter os dela, ou, então, o que achei provável, estava preocupada comigo. Não sei. Sinceramente, não sei.
Terminou a segunda aula. Alguém me pediu algumas explicações sobre trigonometria: respeitavam-me na turma. Eu disse:
- Depois!
Depois? Quando? Engraçado, eu não tinha coragem de despedir-me da turma. O professor de Química ainda não entrara na sala. Pensei várias vezes em levantar-me, ir à frente e fazer uma saudação aos companheiros. Não consegui. "Depois!" fiquei inquieto. Impaciente. Ao meu lado, a morena, que não desviava os olhos de mim, perguntou-me:
- O que você tem?
- Ham?
Repetiu a pergunta.
- É...nada!
- Como nada?
Eu usava um anel dela. Naquele momento, lentamente, tirei o anel do dedo anular da mão direita e estendi-lhe, preso entre o anular e o polegar da mão esquerda. Desviei os olhos. Fixei-os na fórmica azul da cadeira, onde eu desenhara uma casinha, alguns coqueiros, uma cerca, um sol por detrás da casinha e uma longa estrada cheia de pegatas. Uma longa estrada...
- O que significa isto?
Fiquei pasmo. Boquiaberto.
- Ham?
Repetiu a interrogação. Respondi sem convicção:
- Não gosto de recordações...
- Ah!... Eu também não gosto...
Ela não estava entendendo o que estava se passando. Não gosto de recordações, mas aquele anel quase me fez chorar. A casinha, uma longa estrada...
- Você desenha bem.
Fiquei calado.
Com os olhos fixos na longa estrada, disse eu:
- Se em algum momento eu lhe feri, perdoe-me. Foi legal.
Um pouco indignada, levantou a cabeça e, jogando os cabelos pro lado direito, sorriu-me desconfiada. Incerta. Insegura. Meio trêmulo, levantei-me e, dobrando o caderno em forma de tubo, afastei-me devagar, devagar... No meio da sala, rodei nos calcanhares e, meio sem graça, acenei pra ela. Estava imóvel. Pasmada. Baixou a cabeça. Não sei se chorou... não sei. Ao sair na porta, alguém, de dentro da sala, interrogou-me:
- Já vai?
Era uma colega. Forcei a fala:
- É... estou de partida.
As lágrimas despencaram-me queixo abaixo. Limpava os olhos como se tivesse caído alguns aerodispersóides dentro deles. "Não gosto de recordações". Talvez fosse verdade: nunca mais tive notícias dela. Naquele momento, tudo acabara entre nós. Eu disfarçando que tinha ciscos nos olhos e ela, com os cabelos a cobrir a face, rabiscando o caderno.

João Pessoa (PB), 1992

insônia


A noite patética
transborda sem lucidez
pela janela da vida
e eu não consigo
compactar verbetes
para remendar o poema.
Sem pé e sem cabeça,
o poema dá pontadas
na janela da alma
que é muito apertada
para passar meus desaforos.
Apenas, de quando em vez,
dou uma cuspida tímida
na cara do mundo.

João Pessoa (PB), 1993

terça-feira, 8 de setembro de 2009

vida de professor

Como eu chegara de Teresina completamente na pindaíba e era o início do mês da janeiro, fui até ao Colégio Dinâmico, onde eu ministro aulas, e pedi ao diretor, o professor Val, que me pagasse o 13º (décimo terceiro) salário. Naquele momento, a contabilista do colégio adentrou na sala e, então, o diretor, referindo-se a liberação de um dinheirinho pra mim, falou:
- Fulana, dá um "negocinho" aí pra Antonio José!
A contabilista estava meio distraída e, por impulso, respondeu:
- O meu mesmo não! Se você quiser, dê o seu!

metamorfose



No princípio, eu era revolucionário de mesa de bar e meu espírito pairava sobre a esperança de transformar o Mundo.
Eu, jovem rebelde, encharcava a carne, cobertura lubrificada dos ossos, com cachaça, nos bares marginais da periferia da cidade mórbida.
O que se referisse a levante popular, agradava-me. Sonhava em aprender táticas de guerrilha em Cuba, disputava os autores censurados pela ditadura militar, decorava vocábulos rebuscados e mergulhava nos prostíbulos noturnos, onde os jogos de luzes multicolores embaçavam os meus olhos de pseudo-intelectual e as meninas de programa, semi-nuas e cheias de ornamentações desprezíveis, requebravam-se nos corredores estrangulados e asquerosos.
A viatura da polícia, quando estancava no beco de prostituição, obrigava-me a refugiar, com a primeira garota livre, num cubículo qualquer, onde uma luz vermelha enchia-me de tédio. Meio desolado, olhava ao meu redor: uma cama, coberta com um lençol listrado, uma mini-penteadeira, uma toalha e uma bacia cheia de água, inserida no ângulo reto das paredes, logo atrás da porta. A garota, geralmente embriagada, ficava a falar asneiras e, sem nenhuma sensualidade, depois de jogar as roupas num canto qualquer, interrogava-me: "Com luz ou sem luz?"
Achava-me diferente, no entanto, para minha tristeza, não inovei nada: tudo que pensei, falei e fiz, já tinha sido pensado, falado e feito. E o pior, com muito mais eficiência e originalidade.
Em dezembro de 1991, quando fui visitar, num recanto qualquer lá do Piauí, a minha cidade natal, deparei-me, num bar de pariferia, com um grupo de jovens "revolucionários". Discretamente sentado numa mesa solitária, fiquei a pensar na minha geração que, como mágica, debandou-se nas ruas da vida e da morte e, portanto, nunca mais terá a oportunidade de sentar-se na mesma mesa.
Naquele momento, como não poderia castrar os sonhos dos jovens, paguei a conta e, no brilho da rua, saí a olhar, com as mãos afogadas nos bolsos, a lua que, tenho certeza, num futuro bem próximo, se esconderá no horizonte daquela moçada. Era apenas uma fase da vida... uma fase.
João Pessoa (PB), 1992

vi, vivi e vegetei


No princípio, você.
No meio, vodca.
No fim, vômito.
Os três vês do fracasso!
Belém (PA), 1989

terça-feira, 1 de setembro de 2009

vida de estudante



No meu primeiro ano primário, a professora disse pra mamãe que eu estava fraquíssimo na leitura e, assim, necessitando de algumas aulas particulares - ministradas por ela, professora. Mamãe aceitou a proposta.
A professora soletrava:
- Ca, ce, ci, co, cu.
E imperativa:
- Repete!
Eu:
- Ca, ce, ci, co...
Não soletrava o c com a última vogal nem que me matasse. Ela insistia:
- Repete!
- Não, não e não!
Entortou o beiço e, relaxando-se:
- Por que tu não soletras c-u?
- porque mamãe disse-me assim: "não diga nome feio".
Cheguei em casa e, meio constrangido:
- Mãe, não vou mais prá aula!
- Por quê?
- A professora fica só dizendo saliências.

amor secreto



No primeiro ano de escola, geralmente, as exceções são raras, temos uma história de amor marginal e platônico para narrar. Às vezes, apaixonamo-nos pela professora ou, então, como foi o meu caso, pela garotinha mais dengosa e cortejada da classe.
O arrebentar multicolor de cada manhã era o desabrochar de uma nova flor perfumada e diferente que eu, afogado na timidez, nunca tive a ousadia de dedicar-lhe. As cores do mundo eram exclusivas: somente eu poderia definí-las no meu secreto poema. Ninguém via o verde como eu o via. Ninguém.
A maior melancolia era eu ir para casa e a maior felicidade, retornar, bem cedinho, à escola. Ficava a olhar a rua, sentado sobre a calçada alta da escola, mas, como de praxe, a sineta tocava e ela não chegava. Meia hora depois, a mãe dela, segurando-a pela mão, tomava a porta da classe. O meu comportamento abalava-se: os olhos dilatavam-se, as mãos suavam, o coração queria estourar o peito e o corpo tremia. A felicidade inflava-me tanto que, como um ser sobrenatural, me sentia flutuando sobre a carteira. Pelo atraso, a mãe dela pedia desculpas a professora polivalente e, em seguida, divagava sobre assuntos banais, beijava a face da filha e retirava-se. Com a blusa branca, cujo bolso havia grafado, de forma elíptica, a sigla EMGV - Escola Municipal Doutor Getúlio Vargas, e a saia azul-ferrete toda rodada de pregas, ela entrava requebrando-se, toda faceira e cheia de si, na classe do Primeiro Ano-A. As carteiras eram coletivas e, portanto, para roubar o seu aroma embriagador, sentava-me ao seu lado. Em cada respiração, o fôlego da vida fazia pulsar o meu desejo de abraçá-la. Era a menina mais perfeita sobre a face da Terra. Que mundo fantástico; que Sol brilhante; que flor indescritível; que escola bacana...
Na hora do recreio, solitário numa calçada qualquer, ficava, todo amargurado de ciúmes, a vigiá-la brincando com um grupo de colegas. O tamarindeiro, que ficava atrás da escola, rebolava alegre nas manhãs piauienses de sol quente e ventania fastidiosa.
O golpe mais pesado na minha vida nessa época aconteceu quando, numa manhã chuvosa de outubro, a mãe dela, depois de conversar algumas futilidades com a professora, disse que, no ano seguinte, iria transferí-la para outra escola. Quase quedei chorando defronte daquela mulher, mãe de minha musa, para pedir-lhe que não fizesse aquela transferência.
Mergulhei numa grande depressão ao vê-la mudar-se de escola, no ano seguinte, sem nunca, ao menos uma vezinha só, ter pronunciado, com aqueles lábios poéticos, o meu nome. Para ela, nunca existi. Chorei as mágoas da indiferença.
Floriano (PI), 1985

pernas, maçã e pecado


Para Elaine, uma paraibana arretada
Insiro a mão audaciosa
entre os substantivos
(proibidos no Éden)
da menina-fantasia
que se contorcendo esquecida
avessa a alma-prazer
nos versos amarrotados
João Pessoa (PB), 1991

namoro na esquina




À flor da pele
o beijo poético ardia.
E no ângulo reto do muro
ficará, para sempre,
a nossa febre.
João Pessoa (PB), 1991
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