sala VIP

sábado, 28 de novembro de 2009

vida de professor



Eu tinha agendado uma prova num determinado curso da UESPI - Universidade Estadual do Piauí e, então, quando adentrei o portão principal da instituição, deparei-me com um grupo de marmanjos, quase em uníssono, gritando:
- Prova! Em grupo! Em grupo! Em grupo!
Com um envelope de papel vegetal debaixo do braço, parei, fiquei ouvindo e, quando os gritos diminuiram, com uma expressão irônica, perguntei:
- Vocês querem fazer de quatro?
Quiseram não!

a fome tem face


Chegamos, eu e um colega, num restaurante no momento em que os ponteiros do relógio, na analogia da escala do primeiro quadrante do mostrador, indicavam 13 horas e 14 minutos.
Um garoto, com uma caixa de madeira de engraxate, perguntou-me, apontando para os meus pés:
- Quer engraxar, senhor?
Como eu lavara uma topada e, portanto, rasgara o bico do sapato, apenas, automaticamente, sem observar o garoto, disse:
- Não!
Ele passou em direção a outras mesas. Fartamente, tínhamos almoçado, no entanto sobrara comida. O garoto retornou e, colocando a caixinha de madeira no chão, sentou-se sobre ela e recostou-se na parede. O meu colega o chamou. Sentou-se conosco. Os restos de comida lhe foram oferecidos. Ele ficou tão perturbado que não sabia o que pegar primeiro na mesa. Freneticamente, começou a comer com uma colher. A fome saltava dos olhos dele. De repente, largou a colher e, tomando o prato sobre as mãos, comia com gana e um prazer triste que anestesiou a minha atenção, e, portanto, fiquei a enquadrá-lo naquele instante único e particular.
Num estalo mental, meu filho emergiu à baila e, então, fiquei fixando um ponto de fuga distante encravado no limite de minha visão. No meu interior, não existia um limite, mas uma infinita instabilidade emocional embalada pela saudade dos gritos felizes do meu filho dentro de nossa casa. Nossa casa!
O garoto, com uma gula exclusiva, comia como se estivesse numa Santa Seia ou na Última Seia. Diante dos meus olhos estava um apóstulo esquelético e faminto moldado pela política obesa devoradora de sonhos e insensivelmente sarcástica.
Naquela reflexão, percebi que a fome tem face e, sorrateiramente, está nos observando com um olhar esmaecido e de súplicas.

sábado, 21 de novembro de 2009

vida de professor



Como professor substituto, eu ministrava aulas no Instituto Federal do Piauí, Campus Floriano. A disciplina era soldagem e, portanto, as avaliações foram divididas em práticas e teóricas.
Exaustivamente, tínhamos explorado as posições de soldadura (vertical, horizontal, ao baixo, no teto e circunferência), portanto, numa avaliação teórica, fiz a seguinte interrogação:
“Quais são as posições de soldadura?”
Um “estudante” respondeu:
“Em pé, sentado e deitado. Só não pode de quatro!”.

péssimo dia, vizinho!



Acordei agredido por um som brega que, escandalosamente, espantava a noite. Noite que eu tentava, abusadamente, prender debaixo de um lençol listrado e enxovalhado.
Mal humorado, fiquei equilibrando-me sobre as pernas e sentindo coceira alérgica àquelas “notas” musicais desconfortáveis espiritualmente que, como um despertador não programado, o vizinho usava para sacudir a rua.
Tomei um rápido banho e, meio despojado, ganhei a rua estreita que, beijada arrepiadamente pelo vento, quebrava a minha irritação matutina. Um cachorro desfilava elegantemente sem perceber a minha presença solitária. Todas as casas estavam de fachadas cerradas, sérias e travadas como o meu espírito errante.
A cidadezinha tremia lentamente quando um carro aparentemente perdido passava e, aos poucos, era apagado pela linha do horizonte. Tudo se mostrava irritantemente igual e a paisagem monótona tragava o meu ânimo de continuar vagando por áridas ruas mortas. Tortas e torturantes. Aproximei a linha do horizonte dos meus pés, mas não consegui arrastar com ela as pessoas que estavam do seu outro lado e me faziam sentir saudades.
Cabisbaixo, sai empurrando a linha imaginária do horizonte com a ponta do nariz até a porta de minha casa. De repente, ela fugiu assustada pelo vizinho da música brega que, com uma voz de trovão, cumprimentou-me: “Bom dia!”.

sábado, 14 de novembro de 2009

vida de professor


O semestre na Universidade Federal da Paraíba, onde eu cursava Engenharia Mecânica, se encerrara. De férias, fui visitar meus pais em Floriano (PI) e, portanto, ao chegar em casa, deparei-me com um garotinho de mais ou menos uns 9 (nove) anos de idade, oriundo da zona rural, que me esperava para ser alfabetizado. Segundo os comentários, se eu não conseguisse alfabetizar o moleque, ninguém mais conseguiria, pois, além da minha fama de inteligente e hábil professor, ele já tinha peregrinado em vários colégios e casas de professores particulares e, no entanto, não saia do rendimento zero.
De início, fiquei empolgado com a proposta, mas, em poucos minutos de tentativa, percebi que o caso era complicado: aplicava todos os malabarismos e mágicas pedagógicas, mas o moleque parecia que estava num mundo metafísico.
Depois de cinco dias de árduo e desgastante trabalho, resolvi apelar para a tradicional soletração. Abri um livro com figurinhas legendadas. Abaixo da figura de uma igrejinha, eu falei:
- Um C com A, CA; um S com A, SA. Que palavra forma?
- E o moleque, sem nenhuma cerimônia, o que me fez sentir saudades da palmatória pedagógica, emendou:
- Igreja!
Desisti.

por que enganamos as crianças?


O meu filho, que na época deveria ter 5 (cinco) anos, encontrava-se doente. Vomitava e ficava o tempo todo deitado. Ele tinha muito medo de hospital e, então, para que não desconfiasse, chamei-o para um passeio pela cidade. Esforçou-se para ficar de pé e, tentando animar-se, disse que estava pronto. Na verdade, eu o estaria levando ao HTN – Hospital Tibério Nunes, em Floriano (PI).
Com o olhar desconfigurado e derramado sobre a paisagem urbana, observava sem muita curiosidade e, em pouco tempo, arriou-se sobre o banco traseiro do carro. Chegamos ao hospital e, portanto, ficou meio agitado e perturbado: não gostava de hospital.
- Pai, o que nós vamos fazer aqui?
- Falar com o médico, filho. Depois nós vamos pra casa.
O médico autorizou a internação do meu filho.
- A mulher vai trazer injeção?
Fiquei meio confuso e inseguro no momento de respondê-lo. Por que a gente tem que enganar as crianças para confortar o nosso próprio espírito? Eu o enganei mais uma vez:
- Vai ser só uma furadinha, mas não vai doer.
Na verdade, quem doía muito era o meu coração. Ele, o meu coração, ficou tão contraído que, tenho certeza, descoloriu. Amarelou.
A enfermeira não conseguia “pegar” a veia no bracinho trêmulo. Várias tentativas... Nada! Comecei a ficar desesperado, pois ele falava chorando:
- Pai, tu disse uma furadinha. Pai, quero ir pra casa. Cadê vovô?
Naquele momento, eu desejava estar no lugar dele. Eu pensava em dizer uns palavrões pra enfermeira, mas, racionalmente, pensava: ela ficará mais nervosa. Calma. Calma. De quando em vez, eu virava as costas para aquela cena surrealista e, discretamente, enxugava as lágrimas que transbordavam dos meus olhos impávidos.
Finalmente, ela conseguiu encontrar uma veia e, logo, injetou um composto amarelado no braço imobilizado por mim. Passei a noite sentado ao lado do meu filho. Eu segurava com carinho o seu bracinho aveludado espetado por uma agulha, pois, de quando em vez, espantava-se ou, então, virava-se de lado.
Até hoje, tenho certeza, nunca senti, como naquela noite, um sentimento tão diferente e exclusivo na minha vida. Um sentimento humano e verdadeiro de ser pai.

herói censurado



Quero ser protagonista
do meu próprio viver.
Não corte o meu filme
com essa lâmina afiada
do seu olhar bandido!
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