sala VIP

sexta-feira, 2 de março de 2012

caserna verde: sonho e decepções - final


Depois de nomear todos os “inúteis”, o tenente ordenou:
     - Retirem todos os lixos de vocês de dentro dos armários. Não toquem em nada que não lhes pertença. Um soldado irá acompanhá-los. Depressa, depressa, depressa.
     Saímos, comandados por um soldadinho que só queria ser tenente, em direção aos alojamentos. Depois de recolhermos nossos pertences, sob os gritos estridentes e nada amistosos do soldado, fomos conduzidos em direção à saída do quartel. Determinado momento, inflando vigorosamente as veias do pescoço, berrou:
     - Alto!! Sentem-se no chão, cruzem as pernas e curvem-se sobre elas. Sempre olhando pro chão.
        Inicialmente, parecia fácil cumprir aquela pena. Algum tempo depois, mais dois soldados juntaram-se ao outro que já estava comandando o pelotão. Cada um armado com um FAL (Fuzil Automático Leve). Soltávamos uns sorrisinhos tímidos e, imediatamente, éramos repreendidos pelos sentinelas.  Deveria ser mais ou menos 8h e 30min quando fomos colocados em posição de estátuas naquela pista que nos levaria à liberdade. O sol, impiedosamente, nos focava. A pista, gradativamente, era aquecida. O suor começava, abundantemente, a escorrer pelo corpo. A coluna vertebral começou a acusar dores e desconforto. Quando tentávamos levantar a cabeça, um dos soldados apoiava a coronha da arma em nossas costas e forçávamos para a posição de origem. As risadinhas sumiram. Discretamente observando ao longe, comecei a ver aquelas “poças de água” fumegantes na pista. Silêncio total no pelotão de fantoches. Só os coturnos dos soldados, passeando cadenciadamente entre nós, eram ouvidos exaustivamente. Com o tempo, não pensava mais em quase nada. Só no som das botas dos soldados: de acordo com a distância do som, poderia desviar o olhar para os lados, para não petrificar os olhos. Como não tivemos direito ao café da manhã, o intestino ecoava infeliz. O almoço foi servido para toda a caserna, os nossos sentilenas foram rendidos por outros e nós continuamos na penitência. Desesperadora. Respiração ofegante, suor, fome, dores, pista escaldante e um tratamento como se fossemos bandidos, deixava-me quase a ponto de fraquejar, mas, imediatamente, pensava: se meus colegas suportam, eu também suportarei. Transgredir as ordens naquele momento era cadeia na certa. No mínimo 15 dias.
     Pois bem, entre as 13:00 e 14:00h, chegou um oficial que não se identificou e iniciou, com todos nós na mesma posição, um sermão improvisado e enxertado de palavras duras e impiedosas:
     - Em primeiro lugar gostaria de dizer que aqui vocês nunca existiram e, portanto, não deixarão saudades. Do portão do quartel para fora, esqueçam tudo que vocês viram aqui. O que me deixa indignado é saber  que milhares de jovens desejam servir ao exército brasileiro e, no entanto, vocês, frouxos e covardes traidores, pedem para sair. Aqui dentro, seus miseráveis, vocês tem muito mais do que em suas casas: três refeições, cama, disciplina, roupa, oportunidade de ficar engajado, esporte, etc. No entanto, vocês renegam tudo isso para se tornarem vagabundos. Como vocês são imbecis, vou traduzir: renegar significa recusar. Para a pátria, vocês são escórias. Escória, seus semi-machos analfabetos, significa resto, lixo. Isto mesmo: vocês são o lixo social. Não servem para nada. Ou eu estou engano? Tem algum macho neste bando? Vocês não formam pelotão, mas bando. Hoje, o Exercito Brasileiro fecha as portas para vocês. Nunca comentem que já estiveram aqui, pois nunca foram dignos nem de entrar nesta base. Saíam, traidores, e não olhem para trás: aqui é lugar para homens de caráter e não para maricas como vocês.
     Confesso: internamente chorei. Nunca tinha me sentido tão ofendido e humilhado em minha vida. Afastando-se, o oficial, dirigindo-se aos soldados, ordenou:
     - Conduzam estes voadores até a saída.
     Quando cruzamos, trotando, o portão de saída, gritamos, jogamos as bolsas para cima, pulamos e pronunciamos palavrões impublicáveis. Os oficiais foram xingados até a quarta geração.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

vida de professor


     Quando morava em Zé Doca (MA) não havia garagem na casa, portanto eu deixava o carro no pátio do IFMA – Instituto Federal do Maranhão, onde ministrava aulas. Na mesma casa, residia eu, Luis e Péricles, mas ninguém tinha disposição para cozinhar, logo fazíamos as refeições em lanchonetes, padarias e restaurantes.
     Certa feita, completamente despojado, fui tomar café numa padaria. Lá estava sendo travada, liderada por um vereador, uma acirrada discussão política sobre as oportunidades de emprego na cidade. Sentei-me discretamente, mas atento à discussão. Não emiti opinião sobre nada: não conhecia ninguém e só sabia que o falastrão era membro da Câmara Municipal porque assim o tratavam. De repente, o edil, dirigindo-se para mim, esbravejou:

     - Você, meu caro, por exemplo, gostaria de ter um emprego, comprar sua casa, comprar o seu carro, frequentar bons lugares, etc. Eu tô mentindo?

     Congelei a xícara de café no ar e, meio intrigado, respondi:

      - Verdade.

    - Tá vendo aquele carro? – disse-me apontando um modelo completamente ultrapassado e mal conservado    – Ele é meu! Tenho, também, minha casa. Mas eu sou vereador! E você, que vive neste município sem oportunidades, pode comprar carro e casa?

     - Não.

     Voltou-se, satisfeito com as minhas respostas, para a pequena platéia e, com postura vitoriosa, completou:

    - Não precisamos nem ir longe, pois aqui está a prova do que falei para vocês. Esse coitado, como muitos, é um sofredor do descaso político em nosso município.

     Paguei a conta, saí calado e sorrindo com os meus botões.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Caserna verde: sonho e decepções IX

Fomos submetidos a mais uma triagem: exames médicos e testes físicos. Saímos, os aprovados, com um corte de cabelo à militar. Continuávamos, para a caserna, anônimos. Éramos apenas adjetivos depreciativos; fantoches de zombarias. Numa tarde escaldante picoense de corar até a alma, fomos convocados, no pátio do quartel, para mais uma entrevista. Por trás de uma mesa e desconfortavelmente acomodado, sob a sombra de uma árvore, um tenente ordenou que me aproximasse. Bati continência e, em tom de voz militar, falei o jargão de submissão:

- Sim, senhor!

Continuou cabisbaixo como se não me visse. Com um olhar inexpressível, disse-me:

- Sente-se, soldado!

Senti-me mais confortável: era a primeira vez que alguém, dentro daquela fábrica de estresse, chamava-me de soldado. Fiquei, não nego, até orgulhoso. Confirmou meus dados, declinou sobre alguns ex-soldados florianenses que tinham deixado saudades no quartel, fez várias perguntas de cunho particular, ponderou minhas respostas, escreveu algumas observações e, depois de uma prolongada reflexão, ordenou que eu retornasse ao pelotão. Depois de todas as entrevistas, no fechar do dia, retornamos aos alojamentos.

O toque estridente da corneta fazia o dia amanhecer preguiçosamente. Como de praxe, corríamos cambaleantes para os banheiros. Celeuma geral e muitas coisas impublicáveis pronunciadas. Ao formarmos o pelotão, um tenente, com uma expressão acerba no rosto, disse-nos:

- Estou aqui com uma relação de nomes de uns “caga-paus” que não são dignos de estarem aqui dentro. Não são e nem querem ser homens. São uns veste calças que envergonham a própria pátria. Aqui dentro vocês não terão direito a mais nada, nem ao café da manhã.

Depois de um sermão carregado de ira, humilhações e revolta, o tenente começou a nomear, em ordem alfabética, os “inúteis”. Em pouco tempo, ouvi:

- Antonio Jose Rodrigues da Silva.

Uma bola de ar, como se estivesse sólida, desceu arranhando a minha garganta. Alívio e decepção misturaram-se indissoluvelmente no meu âmago. Alívio por ter sido dispensado; decepção por me sentir um trapo imprestável, segundo o discurso flamejado do tenente. Nem imaginava que, antes de deixar o quartel, o pior ainda viria.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

vida de professor

Em setembro de 2011, iniciara, pela rede social Facebook, uma campanha de conscientização contra a violência infantil. O manifesto consistia no usuário substituir, até o dia 12 de outubro, Dia das Crianças, a foto do seu perfil por um personagem de desenho animado ou de gibi. Substitui a minha pelo Fantasma. Criado por Lee Falk, o Espírito que Anda foi o primeiro super-herói a usar um uniforme. Ele tem como companhia o lobo Capeto, o cavalo Herói e o falcão Fraka, que encheram a minha infância de fantasias.

Pois bem, quando a campanha foi encerrada, não consegui localizar a tradicional foto do meu perfil, então, com a webcam, providenciei outra. Dois dias depois, num bate-papo virtual com a professora Giselda Costa, fui surpreendido pela observação dela:

- Antonio José, troque a foto do seu perfi, pois está muito preta.

Respondi, então:

- Nesse caso, professora, terei que trocar a minha pele e não a foto.










sábado, 8 de outubro de 2011

Caserna verde: sonho e decepções VIII

O café da manhã era um mirrado pão francês, que cabia na palma da mão, e uma caneca de 500 ml de café com leite, ou melhor, água suavemente tingida.

Depois do “café”, fomos submetidos a uma longa série de exercícios. Sentia a barriga chacoalhando. E o tenente, correndo em ziguezague entre os recrutas, gritava:

- POSTURA, postura, postura... Todo mundo durinho, durinho, durinho...

De quando em vez, parava em frente a um de nós e, socando energeticamente nossas barrigas, ordenava:

- BARRIGA pra dentro, PEITO pra fora!

A água tingida, batizada de café com leite, revolvia angustiantemente por dentro e, portanto, subia às narinas um incomodante odor acre. Contínhamos o lanço e, paralelamente, engolíamos ofegantes.

- POSTURA, postura, postura... Barriga pra dentro, peito pra fora...

Todo mundo resistia bravamente, pois o sonho de todo recruta era pertencer ao Pelotão Especial (PELOPES), cujos integrantes eram vistos como super-humanos, e, também, tinham regalias exclusivas dentro do quartel. Determinado momento do treinamento, o tenente sentenciou:

- Agora, vamos formar um pelotão especial: o PELOFA. Quem souber dirigir, levante a mão.

Poucos se manifestaram. O tenente, apontando para um espaço vazio, disse:

- Venham pra cá. Quem souber escrever – continuou ele, levante a mão.

Dezenas de mãos foram espalmadas freneticamente no ar. Naquele momento, senti, impaciente, que as minhas chances de pertencer ao pelotão eram ínfimas. Eu olhava com convicção para o tenente como se estivesse dizendo: selecione-me. Fui negligenciado no meio de tantos acenos e, portanto, o meu egotismo foi violentamente ferido. Os recrutas escolhidos já manifestavam um olhar superior e, também, não continham a felicidade esboçada nas faces. O tenente, num tom irônico, concluiu:

- PELOFA, seus voadores, significa Pelotão da Faxina. Portanto, os motoristas peguem os carrinhos de mão e os escritores, as vassouras: pátio e banheiros limpinhos até as 12h.

Entre os recrutas, gargalhadas generalizadas das fisionomias dos caras “especiais”.



quinta-feira, 18 de agosto de 2011

vida de professor

Numa tarde escarlate de um dia qualquer de agosto, eu viajava, nesta minha vida cigana, pelo interior do Maranhão num desconfortável micro-ônibus quando fui moldurado numa cena digna de descrição. Na cidade de Bacabal, adentrou no veículo uma mãe acompanhada de três filhos, sendo dois do sexo masculino. A poltrona pequena e ergonometricamente mal projetada foi dividida entre ela e o menino de uns seis anos de idade. A mãe, com as pernas completamente despojadas, segurava a menina no colo. Foi escanchado, numa das pernas, o menino de aproximadamente quatro anos de idade. De chofre, o cobrador entrou no ônibus e, com a pretensão de mostrar autoridade e ser vistos pelos outros passageiros, berrou:

- Da próxima vez, ou a senhora compra duas poltronas ou deixa a metade desses meninos em casa.

A mãe, coitada, toda constrangida, apenas ficou olhando para o assoalho do carro, procurando algum ponto para esconder a humilhação sofrida. De imediato meditei que ele, o cobrador, não entendia nada de matemática: como ela iria deixar a metade dos meninos em casa se eram três.

A viagem reiniciou e a menina de colo e o menino mais novo choravam penosamente. A mãe sacou um peito muxibento e colocou para a pequena sugar. Avaliei que dentro daquele esquálido e caquético corpo não havia leite algum. Pouco tempo depois, os quatro estavam dormindo aninhados e entrelaçados. Na rodoviária de Peritoró, o motorista sentenciou:

- Trinta minutos para o almoço. Desçam todos: o ônibus ficará fechado.

Desci e fiquei na espreita na porta do micro-ônibus: um mal intencionando passageiro poderia subtrair minha bagagem. Ao virar-me, deparei-me com uma cena tipicamente severina: a mãe, de pé, segurando a menina e, em cada perna, entrelaçou-se um dos meninos. Uma cena de varrer, da face de qualquer um, o sorriso. Parece-me que para aquelas crianças ali estava o único ponto de apoio no mundo. Aproximei-me do quarteto, saquei algum dinheiro da carteira e doei para a mãe, recomendando-a:

- Compre algo para as crianças.

A mulher ficou atônita e, paralelamente, deixou escorrer um pouco de felicidade pelos cantos dos olhos. Olhos sofridos e cozidos. Agradecida, saiu a puxar os meninos. Foram os últimos a entrar no veículo. Ainda traziam água mineral, chocolate líquido, fatias de bolo, guaraná, etc. Os meninos comeram até jogar fora. A mãe, o que me deixou admirado, não tirava nada exclusivamente para ela, mas sempre comia as sobras dos meninos e, de quebra, de quando em vez oferecia-me. Ela tinha uma paciência imensurável, pois os meninos ficaram espertos: pulavam, corriam, olhavam o motorista conduzindo o veiculo, brigavam, choravam e, no entanto, ela, cuidadosamente, ajeitava um e outro. Sem alterar a voz. Sem se aborrecer. Determinado momento, a menina começou a vomitar no assoalho, parecia um tubo quebrado jorrando água. Muitos passageiros fizeram cara de nojo, enquanto o vômito, de acordo com o balanço do carro, subia e descia pelo corredor. A mãe massageava a pequena em movimentos suaves e direcionados do pescoço para o umbigo como se quisesse bloquear as investidas antiperistálticas. Depois de um tempo, tudo resolvido. Os meninos, como tinham bebido muito líquido, pediram para fazer xixi. No micro não havia banheiro, portanto a mãe pediu que o motorista parasse as margens da rodovia. Os moleques desceram. Na volta, o mais novo ficou parado na porta do veículo. O motorista acionou o mecanismo que fechava a porta e, portanto, o moleque foi violentamente comprimido. O cobrador, desesperado, alertou o condutor que, habilmente, retornou, sobre os berros do menino, a porta. A mãe, desesperada, passava a mão nas partes machucadas do filho. Nada grave. Só alguns arranhões básicos. Diante de toda aquela celeuma, senti-me culpado: não imaginei que uma simples merenda fosse causar tamanhos transtornos.

Na rodoviária de Caxias, o quarteto desceu. Fiquei a fitá-los pela janela: ninguém para recebê-los. A mãe pareceu-me sem destino. Apenas varria com o olhar, sem convicção, o lugar. O veículo, gemendo e estalando as estruturas, seguiu a viagem e eu, para sempre, perdi de vista a conclusão da crônica.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

caserna verde: sonho e decepções VII

Depois de empurrar e ser empurrado, proferir e ouvir palavras de baixo calão, consegui, numa grande aflição e nervosismo, abrir o meu armário. Como esperava, nada estava adulterado ou urdido. Assuada generalizada nos vestiários. Ninguém tinha tempo de observar nem o companheiro que estava ao lado, pois o tenente, com aquela voz grave que fazia a alma vibrar de medo, continuava, cadenciadamente, pontilhando o tempo. De chofre, ouvimos:

- DEZ.

Em seguida, berrou rasgadamente:

- TODOS PARA FORA DOS VESTIÁRIOS!!!!!

Quando saímos cabisbaixos, ele, o tenente, estava transformado, no ponto médio central do corredor, numa estátua viva. Enquadrava-nos com uma expressão de indignação. Depois dos vestiários evacuados, o homem sem gestos ordenou ao recruta postado à sua destra:

- Entre e procure seus pertences, voador.

Num tempo relâmpago, ouvimos:

- ACHEI, Senhor!

- Onde?

- Jogado num dos banheiros.

O tenente avançou em direção ao pelotão como se fosse nos esmagar. Subitamente, parou e, com os olhos endurecidos e reprovativos, ficou, durante alguns segundos, a nos encarar. A expressão na face dele era tão forte que, mesmo inocente, me senti culpado. Ele não disse nada. Virou as costas e, com passos firmes, esvaeceu no corredor.

Depois de uma série complexa de exercícios, fomos levados para o refeitório. Era meu primeiro café da manhã na caserna. Fiquemos um longo tempo a esperar, pois as refeições eram servidas primeiro para os oficias e alunos. Finalmente, nosso pelotão foi desfeito. Entramos na fila. Quando eu estava recebendo o café, um grito assustador ressoou pelo refeitório:

- EI, VOCÊ!!!!!

O ambiente ficou tenso. Todo mundo na espreita. Nós éramos anônimos: ainda não tínhamos o nome de guerra.

- Você mesmo de camisa azul. – disse um oficial apontando para um recruta. Saia da fila e venha até aqui.

Nervoso, o recruta aproximou-se do inquisidor, que continuou:

- Derrame o café e coloque os dois pães no lixo. Para todos vocês, voadores sem educação, aqui tem ordem. Cada um só tem direito a um pão. Mandei que esse caga-pau jogasse os dois pães no lixo só por que ninguém sabe onde ele andou metendo essas mãos de merda. Agora, voador, volte para o pelotão. Que este exemplo sirva de lição para vocês. Caso encerrado.


 

domingo, 10 de julho de 2011

vida de professor

O professor de Física Janiel ministra aulas no Instituto Federal do Maranhão, campus Zé Doca (MA) e, também, em vários cursinhos preparatórios para vestibulares em Teresina (PI), à 435 km de distância, onde tem residência fixa. A semana dele é fracionada laboralmente entre as duas cidades.

Pois bem, contou-me que, depois de ministrar aulas em Teresina nos períodos matutino, vespertino e noturno de uma segunda-feira, chegou completamente extenuado em casa e, automaticamente, retirando os tênis, jogou-se no sofá e deixou as pernas descansando sobre uma mesinha de centro. A empregada doméstica ficou, meio interrogativa e incrédula, a fixá-lo. Não se conteve e, então, perguntou-lhe:

- Janiel, o senhor trabalha em algum lugar ou só dá aula?

Pois é, ela passou o rodo no ofício de professor.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Caserna verde: sonho e decepções VI

Ao som estridente de uma corneta, às 6h, fomos acordados. Com arrogância e imperativismo, um recruta estipulou o tempo para tomarmos banho e, em seguida, apresentarmos perfilados em pelotões. Correria e empurra-empurra generalizados. Vários recrutas, que já conheciam as normas do quartel, ficavam a sorrir: fizeram todo o ritual antes do toque da corneta. Alguns ocupavam o banheiro por uma eternidade, então os palavrões de ofensas, ditos por quem estava a esperar, eram canalizados pelos corredores. Gritaria, algazarra, descargas dos banheiros em cascatas ecoavam, o bater e fechar de portas metálicas dos armários, cantores de chuuveiros com mixagens de ferir os tímpanos, o recruta esbravejando palavras impublicáveis e um odor forte de suor, fezes e xixi transformavam o local num liquidificar sonoro ensurdecedor e purgatorial. Depois de toda a celeuma e quando já estávamos formando os pelotões, fomos chamados de volta ao vestiário: alguém fez uma denúncia de furto de seus pertences. Um colérico, enérgico, amargo e impositivo tenente nos recebeu, então, de uma forma não muito amistosa. Ao lado do recruta supostamente furtado, esbravejou:

- Silêncio seus voadores!!!!

Eu não estava entendo nada: tudo para mim, naquele manicômio multifacetado, fazia parte da lavagem cerebral batizada de treinamento. Continuou, portanto:

- Falarei, pela primeira e última vez, estas palavras para vocês: aqui dentro nós estamos formando homens de caráter e não bandidos. Vamos libertar vocês das mentes retardadas, medíocres e contaminadas educacionalmente que trouxeram de suas casas – cuspiu com uma cara de nojo. Aqui não era para existir chave em armário, mas, por uma questão de privacidade, cada um de vocês foi contemplado com armário particular. Se é particular, voadores de merda, vocês só podem manipular os seus próprios objetos. Tristemente, recebi uma denúncia de furto, portanto vou contar até dez para vocês abrirem os armários e conferirem se há algo que não lhes pertence. Depois do tempo, caso os objetos deste caga-pau ainda não tenha aparecido, então, pessoalmente, vou abrir armário por armário. Ai daquele que eu encontrar com os pertences deste voador – disse olhando de soslaio para o recruta denunciante ao seu lado.

O tenente virou as costas e, lentamente caminhando com as mãos para trás pelo corredor, começou:

- UM.

Eu sabia que não tinha me apoderado ilicitamente de nada de ninguém, mas corria o risco de encontrar algo no meu armário: um mal intencionado, com o intuito de incriminar e manchar a reputação de outro, poderia ter fabricado provas. Saímos desesperados em direção aos armários. Em tom grave, ouvi:

- DOIS.

 

quinta-feira, 19 de maio de 2011

vida de professor

O itinerário Zé Doca (MA) a Floriano (PI) é longo. Fazer essa trajetória de ônibus, como esporadicamente faço, é uma odisséia.

Certa feita, o ônibus estava lotado: poltronas e corredor. Numa cidadezinha do Maranhão, entrou uma senhora e uma jovem muda. Cedi a minha poltrona para uma delas, mas a senhora recusou-se a aceitar e desconversou que logo iriam descer. A maioria gritante das mulheres, principalmente as mais jovens, não aceita uma oferta masculina de uma poltrona em ônibus e, da forma como olham pra gente, acham que é um galanteio e não um gesto de elegância e educação. Recusam a oferta e deixam-nos completamente constrangidos. Para as mulheres, penso, parece que não há mais homem capaz de cometer uma atitude nobre e, portanto, elas traduzem tudo como um jogo de interesse e assédio.

Pois bem, determinado momento da viagem, alguém, lá no fundo do ônibus, gritou:
- Aqui tá pegando fogo!!!

Foi uma gritaria geral. A onda humana avançou rumo à portinhola de saída do ônibus. Fiquei sem poder sair da poltrona e, portanto, já estava me preparando para sacar a janela de emergência. O condutor parou o ônibus e o cobrador, angustiado, tentava avançar contra a pressão humana. De repente, vem a correção:

-Eu disse que estava pegando fogo porque o ar condicionado não está funcionando!

Alguns passageiros, no calor sanguíneo do momento, começaram, como dizem os advogados, com injúrias e difamações contra o senhor que provocara a celeuma. Ele, coitado, estava com crianças e não agiu de má fé, apenas não soube se expressar. A tensão interna de todo mundo foi baixando e, depois de alguns segundos de estabilização emocional, começou uma algazarra generalizada. Algazarra de alívio. A senhora que não aceitou a poltrona estava resmungando em função das dores que sentia depois dos empurrões. Para endossar o fio humorístico, uma passageira falou que, na hora do desespero, até a jovem muda gritou: “Valei-me, meu Deus!” Essa cena eu não afirmo: não vi e nem ouvi.
O restante da viagem foi só descontração dos passageiros.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Caserna verde: sonho e decepções - V

A noite, delirantemente suave e acolhedora, numa preguiça desesperadora, chegara.

Fomos encaminhados para o alojamento: grande galpão cheio de beliches. Algazarras e gritarias ensurdecedoras. Depois de um tempo, houve um toque de silêncio; um soldado cheio de arrogância fechou o portão; as luzes foram apagadas, mas as conversas cruzadas, como estações de rádio mal sintonizadas, tinham diferentes freqüências cheias de transientes (sujeiras de linha). Piadas de gostos duvidosos eram captadas, de quando em vez, pelos meus ouvidos. Fui acomodado na cama inferior do módulo, na superior, tinha um aspirante a soldado enjoado, chato, grosseiro, provocador e metido a chefe de grupo. A maioria se calava: o cara não tinha cérebro, mas tinha músculos intimidadores. Eu, com o corpo tremendo involuntariamente em função dos exigentes exercícios, só respondia o que me perguntavam. De súbito, o cara embalava o beliche, contava histórias sem conteúdo, sorria espalhafatosamente por qualquer besteira e, de propósito, sem nenhum objetivo, descia pela escada da estrutura e, portanto, chacoalhava-me. Eu acordava assustado e ficava em estado de transe, pois estava entorpecido pelo cansaço e meio desnorteado com o lugar. Depois de um tempo, levantei-me. Saí do alojamento e fiquei a caminhar pelo beiral. Decidi esperar todos dormirem.

De chofre, deparei-me com um pequeno grupo de recrutas agachados nos fundos do alojamento, na entrada de um matagal, fumando maconha e consumindo álcool. Fiquei paralisado, estarrecido. Um dos elementos do grupo interrogou-me:

- E ai, cara, quer dar um “tapa”?

- Obrigado, não fumo!

- Ah, então veio tomar uma dose? – disse estendendo-me uma garrafa.

- Obrigado, hoje não vou beber: estou cansado!!

- Se tu tá cansado, porra, então o teu lugar é na cama e não dando uma de espião!

- Desculpem-me. Não foi a minha intenção.

Sorrateiramente, retirei-me. Fiquei a pensar que aquela cena era corriqueira: fui recebido com muita naturalidade. No alojamento, depois de tombar madrugada adentro, adormeci cheio de interrogações.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Tristeza

O Instituto Federal do Maranhão, campus Zé Doca, em nome do seu Diretor, Ivaldo José da Silva, decretou luto por três dias em homenagem às vítimas da Escola Tasso da Silveira , no Rio de Janeiro. Ontem, 07 de abril, todas as salas da instituição fizeram um minuto de silêncio e as bandeiras (Nacional, Maranhão e do Município) foram hasteadas a meio mastro. Uma grande tarja preta na fachada do instituto completa a cena de pesar.

segunda-feira, 21 de março de 2011

vida de professor

Quando chegamos ao Bairro Catumbi, Floriano (PI), eram contados os casebres encravados nas entranhas daquela região geograficamente não agraciada por belezas naturais. Na época, era quase inóspita a vida naquela área, pois não havia ruas – apenas caminhos estreitos, nem energia elétrica e nem rede de abastecimento de água.

Nas minhas idéias amorfas de criança, tudo parecia eterno, principalmente eu e meus pais. Raramente se ouvia falar em morte de alguém. Quando uma pessoa morria, os parentes dela, em forma de respeito e sentimento, ficavam de luto por, no mínimo, seis meses: vestiam roupas pretas, não freqüentavam festas, não ouviam rádio, etc, etc. A família, nesse período, ficava mais coesa.

Pois bem, na semana passada, aos 81 (oitenta e um) anos, morreu um dos pioneiros moradores do nosso bairro. Deixou, legalmente reconhecidos, cinco filhos e oito filhas. Há poucos dias, em conversa familiar, ele declarou:

- Apenas um dos meus filhos homens prestou!

Os familiares se entreolharam e, pensativos, começaram a avaliar os nomes dos filhos: “Fulano, não é; Cicrano, não pode ser; Beltrano, muito pior (...)” Analisaram todos os nomes e, então, começaram a pressupor que o homem estava a caducar. Resolveram, logo, censurá-lo:

- Qual foi o que prestou, então?

Sem titubear e meio contrariado, respondeu:

- O que morreu ao nascer!!


sábado, 5 de março de 2011

Caserna verde: sonho e decepções - IV

Extenuados e ofegantes, guardamos nossos pertences nos armários. Bebemos, sob pressão do soldado que nos comandava, às pressas. Meu coração pulsava com tanta intensidade que eu podia ouvi-lo. Formamos, embaixo de insultos e vocábulos impublicáveis, um mini-pelotão. Marchamos desordenadamente e, logo, fomos inseridos num grande pelotão que já sabia, coordenadamente, executar a série de exercícios. Em cima de uma carroceria de um caminhão de guerra, um tenente ensinava-nos, contando sequencialmente, os movimentos físicos. Vigilantes, em torno do grande pelotão, ficavam vários soldados dedos-duros: indicavam para o tenente os recrutas que erravam os exercícios. Nós, coitados, recém-chegados, éramos os alvos. Seria impossível aprendermos em dez minutos a série que os outros já vinham praticando há uma semana. E o tenente, naquela pronúncia particular de quartel, começava:

- Frente pra direiTAAA; frente pra esquerDAAA; frente pra retaguarDAAA...

Confundíamos aquele linguajar oxítono e, portanto, éramos condenados a pagar prendas. A mais famosa era o “peruzinho”: de pé, curvávamos para frente até tocar o dedo indicador no chão e, então, ficávamos a girar em torno dele. Em pouco tempo, para o deleite geral da caserna, saíamos rodopiando descoordenadamente e, portanto, desnarigando ou, então, caindo de costas na pista quente e vendo o mundo por uma ótica afunilada e angustiante. Enquanto uma ânsia de vômito subia e, também, descia pela traquéia, o quartel gargalhava espalhafatosamente. Alguns colegas se feriam nas quedas; enquanto maior o sofrimento do “voador”, como nos chamavam, maior era a diversão geral. Enquanto mais nos torturavam, mais tensos ficávamos e, naturalmente, mais exercícios errávamos. Chega determinado estágio que tudo vira uma grande confusão mental e, então, a gente se lembra da família. O corpo trêmulo agia mecanicamente. A ressaca infernal e o sapato de couro ferindo os meus pés já não me incomodavam tanto quanto o sentimento de ser humilhado e ridicularizado diante de todos. Para mim, que não conhecia tamanhos constrangimentos, aquela não era a educação que eu precisava. Definitivamente, a educação militar me desiludia.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

vida de professor

O meu filho, como é de conhecimento público, fusão genética que me orgulha oriunda de um casamento fracassado, ficou comigo. Hoje, a mãe dele vive em Belo Horizonte, eu moro em Zé Doca (MA), portanto ele está com a minha mãe, em Floriano (PI).

Quando fui aprovado no concurso do IFMA – Instituto Federal do Maranhão, pensei em alugar a nossa casa, em Floriano, mas ele me perguntou, muito deprimido: “Pai, onde eu vou colocar as minhas coisas?” Cancelei, na hora, a idéia: ele ficaria sem referência – pai, mãe e casa.

Pensava ele, também, que, com a minha transferência para o Maranhão, estaria a abandoná-lo. Fazia-me perguntas o dia todo. Andava muito sorumbático. Desfigurado. De quando em vez, eu o surpreendia contemplando fotos no computador da ex-família unida.

Quando fui embora, deixei a chave da casa com ele. No entanto, várias consecutivas vezes, minha mãe ia buscá-lo na casa, pois, sozinho, ficava sentado, horas a fio, na calçada. Ele dizia: “Vó, não tem mais ninguém na minha casa!”

Pela primeira vez, foi reprovado no colégio. A coordenadora, cheia de autoritarismo, provocou-me: “Você tem que obrigar o Jones a estudar!” Falei: “Professora, primeiro você deveria avaliar os problemas que esta criança está enfrentando: vive com os avós, pois eu e a mãe dele nos separamos. Eu não vou, em hipótese alguma, chegar aqui para tomar medidas antipáticas e ostensivas: poderá ficar, a cada dia, mais distante de mim. Como educadora, você deveria aprender a manipular o diálogo e não o chicote!” Ela, meio constrangida, baixou a cabeça e não me disse mais nada.

Agora, estou completando 60 (sessenta) dias de férias junto com ele. Nos dias letivos, vou, como nos tempos da família unida, deixá-lo e, também, buscá-lo no colégio. A alegria dele é contagiante: quer mostrar para todos que, também, tem um pai. Entra todo orgulhoso no carro e fica, insistentemente, a cumprimentar os colegas, professores e trabalhadores da educação. Em casa, arrasta sorrisos pelos quatro cantos, canta, brinca com a Princesa (uma cadelinha basset) e fica o tempo todo a me seguir.

Ansiosamente, espero o dia em que iremos, eu e ele, morar numa mesma casa.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...