sala VIP

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

As multifacetadas do casamento V

A dor insana e incessante espremia a vida do meu corpo. As cores do mundo revelavam-se em preto e branco. Naquele momento, nada me metia medo.
Lembrei-me, numa sinapse de luz cerebral, do surrealista acidente automobilístico que sofri. Segundos antes de o automóvel chocar-se contra uma mureta de concreto de uma rotatória, resolvi, por puro instinto, colocar o cinto de segurança. Eu estava no banco da frente. Carona da agonia. Como foi uma atitude de defesa e reflexo, travei o cinto protegendo apenas o abdômen e, portanto, no instante do choque, fui violentamente arremessado no painel do veículo. Alguém gritava: “O carro vai pegar fogo!”. Mecanicamente, destravei o cinto, abri a porta e, completamente anestesiado, deitei-me na pista, indiferente a tudo. Poderia estar ali ou alhures.
Fui socorrido por populares e, logo, levado para o Hospital Tibério Nunes, em Floriano (PI). Curvado e sobre uma cadeira de rodas, fui deixado. As dores, à medida que o tempo passava, começaram a se revelar. Automaticamente, eu apenas passava a mão no sangue que gotejava do queixo. O joelho direito sangrava numa vazão considerável, mas não doía, e, portanto, era como se eu estivesse olhando aquela cena em outra pessoa. O abdômen e a coluna causavam-me um desconforto irritante. Um médico aproximou-se e, então, perguntou-me se eu tinha plano de saúde. Respondi que não. Ele virou as costas e, faceiramente, saiu a desfilar pelo corredor do hospital. Nunca mais retornou. E eu fiquei na sala de espera do hospital vendo a vida a escorrer pelo corpo abaixo. O meu colega condutor do veículo, como tinha plano de saúde, estava sendo tratado com todos os mimos.
Inácio, um amigo, viu o carro todo amarrotado no balão do anel viário de Floriano (PI) e, então, imediatamente, foi ao hospital. Vendo-me abandonado num canto qualquer, pediu que me conduzissem para um apartamento. Um médico perguntou-lhe: “Quem é que vai pagar?” Ele disse: “É o diabo!! Eu estou mandando é colocá-lo num apartamento.” Na época, Inácio era o gerente do Banco do Estado do Piauí, futuramente incorporado pelo Banco do Brasil.
O cinto de segurança do carro pressionou tanto a minha barriga que, em forma de tatuagem temporária, ficou nela gravado. Fui submetido a uma laparotomia – cirurgia exploratória abdominal. Pois foi, remexeram tudo. Descobriram que o meu intestino estava perfurado e, portanto, extraíram um pedaço dele. Começava, logo, o meu estado de penúria hospitalar, pois, depois da cirurgia fechada, o intestino se recusava a funcionar. Simplesmente, o médico não sabia o que estava acontecendo. Eu sentia como se a minha barriga fosse uma bola de sopro, sempre a crescer. Tomei quase todo o estoque de “Algarol” do hospital, mas nada: o intestino continuava “dormindo”. Em função do inchaço do abdômen, a cirurgia não cicatrizava e, então, começou a supurar. As pessoas diziam, todas reservadas nos corredores, “Começou a apodrecer, não escapa!”.
Os periódicos barulhos das rodas de um carrinho de apoio acusavam a aproximação de uma enfermeira. Dolorosamente protestando através dos rangidos das dobradiças, a porta do apartamento se abria e, portanto, carregando uma bandeja de inox cheia de seringas, algodão, ataduras, iodo, medicamentos, esparadrapos, pinças, etc, etc., entrava uma enfermeira. Ela injetava com uma seringa, várias vezes ao dia, solução de iodo através dos pontos cirúrgicos quebrados no meu umbigo. Eu sentia o líquido subindo e descendo por baixo do couro cabeludo. O meu umbigo ficou deformado pro resto de minha vida. Também, aplicava-me, nos braços, vários tipos de medicamentos e, substituindo o frasco de soro, afastava-se. Compenetrada. Eu ouvia o barulho frenético do carrinho fazendo vidros e metais vibrar se perdendo ao longe. Depois de um período, os meus braços e as minhas mãos incharam e, em função da quantidade de picadas que sofri, então, os medicamentos passaram a ser adicionados no soro.
Como o intestino não respondia, o médico, numa determinada tarde, decidiu que às 17h iria abrir-me novamente, pois, segundo ele, chancelado por mim, eu não resistiria uma viagem até Teresina (PI).
Foi nesse melancólico tempo de espera que fechei os olhos e fiquei aguardando uma luz intensa no fim de um túnel fictício.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

vida de professor


O telefone sem fio chegara à cidade. O telefone de meus pais, de cor vinho gritante, estava com defeito: a pessoa falava e, paralelamente, ouvia a própria voz. Resolvi presenteá-los com um novo aparelho. Adentrei numa loja de departamentos em Floriano (PI) e, meio ignorado, fiquei olhando, por muito tempo, as vitrines, onde os telefones encontravam-se isolados. Meio desacreditado em vender-me alguma coisa, aproximou-se um vendedor. Perguntei-lhe:

_ Qual o preço deste aparelho?

Olhando-me de cima a baixo, o vendedor, fazendo uma cara de desânimo, distorceu a resposta de minha interrogação:

_ É preciso comprar uma linha para este telefone funcionar!

Tive vontade de dizer alguns impropérios para o vendedor, mas, contendo-me, resolvi prossegiur a interlocução:

_ Essa linha é para amarrar o telefone?

A fisionomia dele poderia ser traduzida pela frase: “Como tem gente imbecil nesse mundo.” A contragosto, articulou:

_ A linha é comprada na TELEPISA.

Na época, a TELEPISA – Telecomunicações do Piauí S.A, era a concessionária vigente. Debochei:

_ Você quis dizer “Casas das Linhas”, não?

O cara ficou inacreditavelmente pasmado e, então, objetou:

_ Aconselho você a não comprar o aparelho.

Retirou o fone da base e, como um demente, começou a falar asneiras desconexas. Estendendo-me aquela máquina do tempo, disse:

_ Teste como está mudo. É assim que vai ficar na sua casa!

Com um aspecto curioso de aprendiz, protestei:

_ Você não ligou nenhum número!

O vendedor descontrolou-se e, então, entre os dentes e bem próximo do meu ouvido, gaguejou nervoso:

_ Liga pro inferno que tu vai ouvir uma voz bem docinha...

Não perdi o lema e, instantaneamente, completei:

_ É a sua mãezinha quem vai atender?

Ele fez um gesto obsceno com os dedos e, furioso, retirou-se balbuciando vocábulos impublicáveis.





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Frase de placa


"O importante não é viver, mas viver bem."

Platão

"Talvez este mundo seja o inferno de outro planeta."

Aldous Huxley

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

As multifacetadas do casamento IV

Há um adágio que diz: “A pior vida do mundo é melhor do que morrer.” Peremptoriamente, afirmo: quem criou este provérbio não conheceu o purgatório enigmático que a dor aprisiona o indivíduo.

Eu avaliara equivocadamente que o sistema de drenagem, introduzido via nariz no meu âmago, era a causa de toda a minha angústia, dor e desconforto, pois, depois de sua súbita e inesperada retirada, continuei enfarado, esquálido e aguilhoado por uma dor continuamente petulante.

A repugnante dor minava a minha resistência com uma crueldade gotejada. O meu caquético corpo não tinha mais vontade de ser manipulado por uma alma e, paulatinamente, deixava escapar as paixões terrenas. Quando estava deitado, achava que se eu caminhasse aliviaria aquela insana angústia; quando começava a caminhar, o corpo reclamava um desconforto maior. Eu via as pessoas pré-operadas sorrindo nos corredores do hospital e, independentes, carregando os seus frascos de soros, de um lado para o outro. Eu não tinha independência. Não sorria. Pensamentos sombrios e macabros de saudades e despedidas acalentavam-me no leito. Os meus projetos de vida, incluindo o casamento, foram rodopiando pelo escuro tubo imaginário do esquecimento.

Lembrei-me de experiências de vida pós-morte que tinha lido. Segundo os relatos, o indivíduo entra num túnel e, logo, vê uma luz muito intensa. No centro cirúrgico do Hospital Tibério Nunes de Floriano (PI), passei por uma síncope temporária, mas não vi túnel nem luz. Não vi nada. Fui reanimado pelos médicos. Na minha memória não há nenhum arquivo cognitivo lógico ou ilógico da cena. A história (ou estória) da alma ficar levitando sobre o leito a olhar o corpo desfalecido sendo ressuscitado pelos médicos, eu não vivi. Fui informado, muito tempo depois, por um colega, da minha “morte” e “ressurreição”. Desse período, nada ficou registrado nas linhas ou entrelinhas feéricas ou eclipsadas do meu errante itinerário de vida. A minha memória foi, simplesmente, apagada.

A esperança que “minha hora” ainda não tinha chegado foi expulsa dos meus pensamentos e, também, do apartamento hospitalar. Hermeticamente, cerrei ambas as portas. A realidade me agredia covardemente na cama e, paralelamente, assustava todos os meus sonhos. Sonhos que começaram a se esconder, em forma de desespero, nos olhos de minha mãe. Eu fenecia firme, mas os gestos me condenavam. As raras visitas não tinham mais uma postura altiva e de esperança, mas deixavam a tristeza pousar nas fisionomias e, vacilantes, ficavam a fuzilar o chão com os olhos. As conversas dentro do apartamento ficaram raras. Discretamente, as pessoas chamavam a minha mãe e, no corredor, sussurravam coisas não inteligíveis pra mim. Era o sinal que eu estava prestes a abandonar o sofrimento e, logo, repousar profundamente.

A minha mente, confusa pelos antibióticos e delirando de sofrimento, começou a desejar a morte. Com a morte, pensava, tudo será sanado. Eternamente sanado e, portanto, poderia ter paz. Desejei, mas não disse pra ninguém. Apenas sofria, à medida do possível limite, sem reclamar. Sem escândalo. Sem choro. Evitava encarar as pessoas, pois elas tinham feições de despedidas. Eu me tornei um capacho fiel da dor: não me deixava concentrar mais em nada. Apenas nela, a famigerada dor. Minha inseparável conluiada, segundo após segundo.

Atingi um limite de dor que cheguei a abafar nos meus desvarios os planos de formalizar uma família. Esposa, filho(s) e lar foram lançados, num pacote feito às pressas para descarte, no pretérito irreal. Tudo, naquele momento, não passava de um sonho que não poderia se materializar, pois, eu mesmo, segundo pensava, estava sendo tele transportado para um lugar que fantasia o imaginário humano, mas ninguém sabe explicar onde fica.

Estava entregue à situação. Fechei os olhos e, então, fiquei a esperar uma luz intensa no fim de um túnel fictício.




quinta-feira, 9 de setembro de 2010

vida de professor


Numa determinada manhã escaldante piauiense de domingo, eu estava, sozinho em casa, a assistir ao filme “Black Rain” que enquadra a vida de alguns japoneses, no ano de 1945, antes, durante e depois do lançamento da bomba atômica pelos americanos sobre as cidades alvos. A minha ex-esposa tinha saído com as crianças para um clube social. Como eu ministrava aulas durante a semana nos turnos matutino, vespertino e noturno, não tinha ânimo para sair nos finais de semana.

De repente, insistentemente, alguém batia palmas no portão de minha casa. Deixei os segundos avançarem, mas nada, as palmas continuavam cada vez mais fortes. Resignado, resolvi ir saber quem era que lá estava. Abri a porta e vi um vendedor ambulante especado no portão com um carrinho cheio de bugigangas: redes, espelhos, quadros, panelas, copos, etc, etc. O suor porava abundantemente pelo rosto dele. Meio impaciente, falou:

- O dono da casa está?

-Está!

-Chame ele aí! – gritou olhando pro chão e cuspindo.

Não debochei, não mudei a expressão. Apenas completei o diálogo:

- Sou eu!

O vendedor respirou fundo, abanou a cabeça negativamente, jogou umas tralhas nas costas e, olhando-me duramente pelo canto do olho, saiu empurrando aos solavancos o carro de variedades e falando amargamente grosso:

- Eu aqui num sol de lascar, trabalhando sério e tu fica com sacanagem. Não quer chamar o dono, não chame, mas não fica tirando onda com a minha cara, seu merda!

Como fui tratado por “seu merda”, em vez de “seu Antonio”, tive vontade de jogar uma bomba atômica dentro do carrinho de bugigangas dele. Só pra ver aquele merda voando aos pedaços.








segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Frase de placa


"Ignorar o inesperado (ainda que fosse possível) seria viver sem oportunidade, sem espontaneidade e sem os ricos momentos dos quais a vida é feita."
Stephen

As multifacetadas do casamento III



Acordei completamente desnorteado e, sentindo-me em um ambiente não familiar, vi a minha irmã, Janete, que viria a morrer em um acidente automobilístico, sentadinha solitariamente numa cadeira. Como eu fiz um gesto brusco e involuntário com a mão, ela, rapidamente aproximando-se, disse-me: “Calma, você está no hospital.”
Senti uma pitada de felicidade por estar de volta à vida, no entanto, degustei um incomodo gosto de borracha. Fizeram a introspecção de um tubo de borracha, através do meu nariz, para fazer a drenagem interna pós-operatório. A experiência mais azucrinante que já vivi foi aquele sistema de drenagem: a garganta ardia com o atrito da borracha; a tentativa de engolir em seco era recompensada com angustia, dor e impaciência; não podia mudar de posição, pois o tubo provocava-me ânsia de vômito; a sede era incontrolável, mas não podia beber; o suor pesado de antibiótico provocava-me vontade de tossir, mas não podia: os pontos cirúrgicos seriam arrebentados; só conseguia mexer os olhos e um dos braços: o outro estava espetado com soro cheio de medicamentos amarelados.
Durante intermináveis dois dias, fiquei enquadrado na mesma posição. Esse foi o tempo para uma reflexão picotada pela dor, mas, nos momentos de sinapse lógica, lúcida: a minha obra na Terra ainda não estava consumada, pois me faltava um filho para desfilar com os meus genes.
Com a pressa habitual, o médico invadiu o apartamento e, então, ignorando-me, perguntou a minha mãe como eu estava reagindo ao tratamento. Diagonalmente, forcei a minha participação no diálogo e, logo, perguntei-lhe se não podia retirar o sistema de drenagem. Por impulso, aproximou-se da cama e, retirando um esparadrapo colado sobre o meu nariz, puxou, sem avisar-me, o tubo de borracha. Vi, pulverizados no ar, sangue e restos esverdeados de vísceras. A dor foi tão contundente que eu, agarrando-me em um dos braços dele, subi junto com o tubo. Fiquei, meio desacordado, a flutuar, entorpecido pela dor, sobre o leito encharcado de suor. Não gritei. Não fiz escândalos, apenas musicalizei um sonoro gemido que fez eco no meu ser.
No dia seguinte, uma ex-namorada, que dizia, quando eu estava com saúde, adorar-me, foi visitar-me. Colocou um pequeno jarro com uma rosa de plástico sobre uma mesinha, olhou-me de soslaio e, abanou a cabeça negativamente como quem dizia: “Você já era, meu caro!” Não demorou muito, olhou-me novamente com indiferença, saiu meio altiva e nunca mais retornou àquele apartamento hospitalar.
Depois dessa visita, meus pensamentos foram revoluteados novamente: faltavam-me fundamentos convincentes sobre a minha decisão de casamento. Pra mim, a ex-namorada, depois da expressão de indiferença, foi apenas um simulacro lacônico, mas que me projetou em delírios reflexivos. O taciturno cubículo do hospital já não amedrontava mais o meu corpo caquético e de alma confusa.
Olhei pro teto e, decepcionado, meditei em coisas que me fizessem esquecer o ser humano.
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