sala VIP

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Vida de estudante



No ginásio, envolvi-me com uma turma que não gostava de estudar. O pessoal era muito brincalhão, fanfarrão, zombador, etc. Portanto, constantemente a gente estava sendo punido pela direção do colégio com uma suspensão após a outra.
Eu já andava com vergonha de chegar em casa com a seguinte comunicação para os meus pais: "Seu filho só assistirá às aulas mediante a sua presença na secretaria da escola".
Certa vez, como faltara giz na aula de matemática, para ser gentil, fui buscá-lo. Ao chegar na secretaia, antes de eu dizer alguma coisa, a diretora, sem nenhuma justificativa, disse-me:
- Não toma vergonha mesmo, heim? E concluiu com raiva: - Três dias de suspensão!!

o carneirinho vermelho



Antes do Sol ferir as folhas com seus raios, fazendo-as chorar o orvalho noturno, acordei. À distância, ouvia, em alguma casa da vizinhança, os gemidos de um pilão. A noite ainda se negava a ir embora e os raios de uma lamparina espremiam-se pelas frestas da janela do quarto onde eu dormia e, portanto, fulminavam a minha rede. Insistentemente, uma cabra balançava o chocalho, preso por uma amarra no seu pescoço, na malhada da porta da fazenda. Fora de casa, meu pai e minha mãe, bem baixinho, falavam coisas ininteligíveis. Puxei a correia de couro curtido e abri a porta, que se espreguiçou estalando-se: as dobradiças mal sentadas e sem lubrificação rangiram dolorosamente. Ganhei a sala, que, como todo o padrão da região, não tinha paredes. Na entrada, apenas um peitoril onde os visitantes descansavam gibões, perneiras, selas, amarras com chocalhos, chicotes, peias, chapéus, etc. Debaixo de um umbuzeiro, bem na frente da casa, minha mãe segurava uma lamparina e uma cuia. Meu pai, na maior naturalidade, puxou uma faca, de doze polegadas, da bainha que, brilhando o gume afiado à luz da lamparina, descreveu uma parábola no ar e foi enterrada no pescoço de um carneiro. Na minha inocência de criança, não entendia nada daquele ritual macabro. Um líquido viscoso e vermelho começou a escorrer pelos pêlos do carneiro. A minha mãe, rapidamente, colocou a cuia para aparar o líquido de fácil coagulação. Aquele líquido encarnado foi muito agressivo a minha estrutura psicológica: eu não sabia que por detrás daquele pêlo tão branco se escondia uma cor tão forte. Ninguém nunca me falara! Não entendia, também, por que papai fez aquilo. Ele mesmo me ensinara: "Olha o carneirinho, filho! Carneirinho!" E carneirinho era criado para ser perfuro-cortado com faca? Eu não tinha a mínima ideia do que significava o substantivo MORTE. Mesmo assim, naquele momento, pressenti que algo, nunca visto antes por mim, estava acontecendo. E, então, senti um filete de morte, carregada por uma brisa geladíssima, ligando-me àquele líquido. Uma sensação de mal estar e frio. Algo que eu não via, mas embriagava o meu ser. Uma coisa identificável: nunca mais foi preciso alguém dizer-me que existe a morte. Ela estava ali, na minha cara! Ela era aquele cheiro forte de sangue e mijo. Era aquela faca vermelha com uma biqueira na ponta. Era o carneirinho esticado pelas patas no umbuzeiro. Tudo era a morte. Não suportei ficar de pé com o cheiro de morte me sufocando e, portanto, caí sobre os calcanhares e fiquei recostado sobre os troncos de carnaúba que formavam o peitoril. Tremia. O queixo batia. O filete de morte percorria a minha espinha. Uma ânsia de vômito dominava-me. Minha mãe, percebendo-me, abandonou a cuia e correu ao meu encontro. Levou-me pro interior da casa e não deixou que eu visse e sentisse mais a manifestação da morte naquele terreiro. No entanto, pro resto de minha vida, ficou o estigma: não tolero ver sangue.
Floriano (PI), 1984

sábado, 22 de agosto de 2009

diário secundarista

Em memória de Espedito França Júnior e José Albino



No segundo grau,
todos respondíamos, um a um:
PRESENTE!
Hoje, alguns não respondem
e ninguém (ninguém!)
pode justificar as ausências
ou disfarçar a voz
para ludibriar o professor,
pois eles foram para a Universidade Eterna.
João Pessoa (PB), 1992


vida de professor



Certo dia, entrei numa sala de Informática da UESPI - Universidade Estadual do Piauí, para ministrar uma aula de cálculo. Dois alunos conversavam banalidades o tempo todo. Não estavam nem aí para minha exposição entusiasmada do conteúdo e, paralelamente, incomodavam os outros que queriam aprender um pouco do assunto.
Parei a aula e fiquei de braços cruzados, fixando os dois alunos. Nada. Continuavam tagarelando. Então, chamei a atenção deles e comecei a falar das dificuldades cotidianas para a inserção de profissionais no mercado de trabalho e, por tabela, "batia" verbalmente nos dois.
Um dos alunos, chamado Leonardo, achando-se ultrajado, pediu para falar e, então, com uma maneira sagaz e eficiente de depreciar-me e zombar do ofício de professor, disse-me:
- Antonio José, se eu não arranjar nada para fazer na vida, então eu virei dar aulas nesta merda aqui...

o menino de óculos



Depois de uma semana de intensa correria, eu estava num estado de profunda abstração - completamente esquecido na poltrona do ônibus, a observar a paisagem urbana da cidade de Belém (PA). Resgatava fragmentos da memória que me marcaram entre os terráqueos.
Numa viagem de ônibus coletivo, pelo perímetro urbano, dezenas de pessoas sentam-se ao nosso lado. Como isso é rotina, não nos preocupamos em memorizar as fisionomias dos passageiros.
De repente, despertei e, ao girar a cabeça pro lado direito, meu olhar encandeou-se com o de um garotinho, de aproximadamente 6 (seis) anos, que, bem de pertinho, me encarava. Ele apertava os olhos e fazia um grande esforço para enxergar-me através de lentes espessas. Parecia que eu me tornara um ponto de fuga. A armação grotesca do óculos amassava o rosto do garotinho, deformando-o. Quando ele explorou cuidadosamente a minha face, desinteressou-se pela minha caricatura (esboço inexpressivo e de mau gosto). Com minunciosidade, olhava todas as formas geométricas. Queria explorar tudo o que estivesse ao alcance de suas mãos.
De imediato, bate-me forte uma depressão e, portanto, sinto-me a contrair dentro do corpo. Sou metamorfoseado numa criança. Então, vejo o quanto o meu corpo é grande: minha alma fica folgada dentro dele. Só eu sei o peso que ele me provoca para ser arrastado pelas vielas e avenidas da vida. O bigode pesado, a radiação serena do olhar, a postura reflexiva e o sorriso reprimido, já registrei no cartório do cotidiano. São patentes implagiáveis.
Uma senhora, num tom amável, chamou o garotinho. Como não fui indiferente ou discreto com a presença dele, virou-se e, com a mão dançando no ar, disse-me: "Até logo!" Saiu apalpando as poltronas do ônibus com dificukdade. Enterrado dentro do uniforme escolar, com aquele óculos no rosto, parecia um intelectual. Fiquei preocupado com a barreira que existia entre ele e o mundo: as lentes espessas.
Belém (PA), 1989

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

cuidado: veneno

Colocaram a minha caveira,
como timbre de advertência,
nos rótulos de veneno.
Na madrugada trêmula,
tenho um medo inefável
dos músculos sedentários
destamparem a lata burlesca
e me obrigarem a mastigar,
em forma de pó, a morte.
João Pessoa(PB), 1992

terça-feira, 18 de agosto de 2009

vida de professor



Numa determinada turma de Licenciatura Plena em Matemática da UESPI - Universidade Estadual do Piauí, campus de Floriano (PI), tinham dois alunos vibradores com o curso e, portanto, faziam questão de resolver ou tentar resolver aqueles problemas que a gente gosta de dizer que nem o diabo sabe solucioná-los.
Pois bem, certo dia entrei na sala, às 8:00h da manhã, empurrado pela ressaca da noite anterior. Notei que os dois estavam eufóricos e olhavam-me com um ar de quem dizia: "hoje nós vamos acabar com você".
Mal apaguei o quadro, um dos alunos, esfregando as mãos, disse-me:
- Antonio José, passamos a noite estudando e não conseguimos resolver a questão número tal!
Pensei: "é bomba, tô ferrado!".Então, iluminado pelos deuses do álcool, brilhou-me a resposta:
- Ora, meu amigo, você que passou a noite toda estudando não conseguiu resolvê-la, imagine eu, coitado, que passei a noite toda bebendo cerveja!!!

a janela



É noite. A febre das paredes do apartamento irrita-me. Meu corpo incha nesta estufa numerada - aptº 202. As paredes comprimem-me. Então, a minha solidão começa a escorrer pelas frestas da porta e pelos recortes venezianos da janele, a fluir sem viscosidade para a rua.
Meu vulto esquipático e frágil desce a escadaria. Ganho a rua. O vento esvoaça a minha camisa de tecido ordinário. A rua deserta acusa-me: sou um perfeito marginal errante. Paro diante de um edifício: uma janela, no décimo segundo andar, brilha solitária. O prédio espeta o espaço cinzento e apoético e as suas arestas afiadas cortam, neste instante, a minha solidão. A sombra do prédio estendida no chão não mostra a janela solitária, no entanto, independente da angústia que pode estar se escondendo atrás dela, continua alegre, quiçá gozando do desespero humano. Estou envergonhado. Encaro a janela como uma nova abertura para a vida; uma nova esperança que, nas noites sombrias, ficará sorrindo da cidade. Cidade que, na sua estaticidade, fica a consumir, geralmente de emboscada, a vida humana.
Estou cansado. É noite.
Campina Grande(PB), 1985

Acidente na Rua das Trincheiras


A vida coagulada
rente ao meio-fio
não precisava de coração.
O crânio esmagado
no asfalto melancólico
deixou os dentes
escorrer pela boca...
Alguém vomitava
da cena macabra.
Para um anônimo, vítima do trânsito de João Pessoa.
João Pessoa (PB), 1991

sábado, 15 de agosto de 2009

o remédio do futuro



O remédio do futuro chegara. Não se podia duvidar. Papai foi o primeiro a ir ao consultório. Ele estava com dores no espinhaço e com ataques de nervosismo. O médico lhe receitou "polivitaminas". A minha tia, que estava no mês de parir, foi a segunda a receber o mesmo remédio. Luzinete, minha irmã, como rangia os dentes durante a noite, não escapou de ganhar a fórmula milagrosa: "polivitaminas". Eu também sentia-me meio doente: dor na barriga, dor na cabeça, anemia, fastio e outra porrada de incômodos, então fui ao INPS. Quando entrei no consultório, o médico já estava rabiscando a receita, e, antes de eu falar o que sentia, disse-me:
- Passe na farmácia do posto e pegue esse remédio.
Li a receita: "polivitaminas".
Fiz uma súplica ao médico:
- Doutor, o senhor não pode indicar-me outro remédio?
- Não. O estoque de "polivitaminas" está muito grande e vencerá no próximo mês. Temos que empurrar tudo ainda este mês...
Publicado no jornal O Dia. Teresina (PI), 03 de agosto de 1985

virgem

A poesia contraiu-se
e, envergonhada, negou-se
a deitar nua na lauda
e mostrar os verbos abertos,
os substantivos provocantes
e os adjetivos palpitantes,
pois ficou com medo
de ser violentada
pelos olhos gulosos e tarados
do leitor aventureiro.
João Pessoa(PB), 1991

vida de professor



Na rua Delson Fonsêca, Bairro Catumbi - Floriano (PI), tem um barzinho onde, independente de ser dia útil, sábado, domingo ou feriado, estão reunidos, em torno de uma garrafa de cachaça, os denominados "pés inchados". São indivíduos que ficam disputando quem resiste mais tempo à morte por cirrose hepática.
Certo dia, quando eu passava em frente ao barzinho, um "pé inchado" chamou-me:
- Antonio Jose, bota um real pra nóis completar uma garrafa de cana!
Parei e, com o clássico gesto de bater nos bolsos, disse:
- Hoje, não tenho!
Girei novente graus nos calcanhares e retomei o meu caminho. outro "pé inchado" que estava na rodada perguntou:
- Onde é que ele trabalha?
- Ele é professor.
Aumentando o tom de voz de propósito para que eu ouvisse, retrucou:
- Tu tem coragem de pedir dinheiro a professpr?! Professor é igual a nóis: anda pedindo esmola também...

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

autobiografia


Eu, Antonio Jose Rodrigues, portador do registro civil número três mil setecentos e noventa e cinco (3.795), nascido aos cinco de julho (05), às doze horas e trinta minutos (12h30min), num distrito qualquer do Piauí, CONSIDERANDO QUE
I - Fui revolucionário, mas não matei nenhum tirano com as minhas palavras quentes e violentas;
II - Fui boêmio, mas a minha cadeira encontra-se vazia num canto qualquer de um bar ordinário;
III - Não há vazos de flores policromáticas na minha janela, para que eu recorde da primavera;
IV - A mulher que amei, em alguns dias embriagados da década de setenta, desapareceu numa esquina anônima piauiense e o seu corpo-poema flutuante encantou-se aos meus olhos;
V - Planto, ano após ano, os meus sonhos e, por mais que eu os regue, não brotam: a fertilidade do pensamento é sufocada pelo calor intenso do Sistema;
VI - Não há versos escorrendo, em forma de cascatas, pelas paredes do meu quarto.

RESOLVO
Ficar no meu cenário, limítrofe à visão, olhando a apatia da cidade. Mesmo confinado nesta parafernalha eletrônica, sinto que sou sensível: meus olhos estão carregados e as minhas pálpebras não suportam, no momento de eu assinar esta resolução, o peso das lágrimas. O infinito interior pertence-me.
Brasília (DF), 1997

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

vida de professor

Quando cheguei na universidade, os alunos estavam dispersos nos corredores. Como era o primeiro dia letivo, os acadêmicos ainda não tinham recebido a grade de horário, então, quando eu passava entre eles, alguém gritou:
- Professor, você vai dar na nossa sala?
Fiquei meio encabulado e, recompondo-me, respondi:
- Não...em hipótese alguma! Vou ministrar aulas na sua sala!!!

poeta de bar e acadêmico sem farda



O pêndulo da paciência entorta as minhas idéias em função da maturidade. As idéias expandem-se sob os ossos da minha caixa craniana. O espelho, numa parede desbotada, reflete um rosto inexpressivo. Em cada batida do relógio, sinto os ponteiros aprofundando os sulcos da minha face. O bigode virgem, que muitas vezes já me intitulou de senhor, arrasta-me para a escrivaninha e força-me contra a cadeira giratória. Então, agrido as laudas com o meu íntimo descontente.
Nesse momento, sinto que a minha visão holística do mundo naufraga no mecanicismo reducionista de Isaac Newton. E se Galilei Galileu acha que a matéria é independente dos sentidos (visão, audição, olfato, gosto e tato), eu, numa solitária mesa de bar, fico a alcoolizar, através de gestos monótonos, as células cerebrais, e, em seguida, depois da homogeneização matéria/sentidos, sou um homem que sei avessar o meu interior através de frases. Frases compostas por letras, sílabas, esforços, coerência e prazer.
Ao entrar na academia (UFPb), troquei a minha farda (pele secundária) por uma camisola de dormir, confeccionada com algodão ordinário. Na camisola, eu tenho liberdade de sentir contrações das víceras musculomembranosas e, durante a noite, borrá-la. Na ressaca infernal da manhã, escrevo, respirando o ranço noturno, um poemaluco ou uma porralouquice qualquer, sem medo da pena neurastênica da crítica.
Os acadêmicos da poesia não devem preocupar-se com os rebentos bêbados: o coração da poesia bate em todos os tórax, lançando versos nas veias de quem se nega a morrer de tédio. A poesia não é para ficar confinada nos sete quilômetros de veias do corpo, circulando com plasmas, glóbulos vermelhos e glóbulos brancos, mas, sim, ir pro olho da rua.
Nós, os bêbados, somos poemas animados que, sem medo do mundo, desfilamos desordenados nos becos escuros da cidade - ruelas retorcidas que nos conduzem a eternidade.
Publicado no jornal Correio da Paraíba. João Pessoa, 07 de outubro de 1992
Depois que publiquei um poema num veículo de grande circulação na Paraíba, um crítico literário de João Pessoa escreveu que eu fazia poesia de bêbado, portanto fiz este texto e, desde então, nunca mais fui alvo do tal crítico.

politicossos


com as palavras descarnadas
faço um poema raquítico
que será fotografado
por várias retinas retas
e será repugnado
pelos cérebros juízes
que não gostam de sentir
a putrefação dos versos.
faço um poema nordestino
(vocábulos aglutinados e tímidos)
que se escora no papel
e fica a mastigar
a mesma política
que corroeu suas vísceras
Publicado no Correio das Artes. João Pessoa, 22 de setembro de 1991

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

poema animado

a cidade é um poema
desconexo inquieto
que flui da minha lógica
para as laudas
(estas prostitutas anêmicas
que estão sempre a espera
do sêmem azul-fatal
da minha caneta moralista)
Publicado no Correio das Artes. João Pessoa, 22 de setembro de 1991

Vida de professor



Numa sala de Ciências da Computação da UESPI - Universidade Estadual do Piauí, canpus de Floriano (PI), eu ministrava, empolgado, uma aula de Álgebra Linear. Como eram os dois últimos horários da manhã, um aluno, depois das 11:00h, começou, semelhante a um estudante de ensino fundamental, a espreguiçar-se na cadeira e a distorcer, arrastadamente, o foco da aula:
- Professôôôôôôô... tô cum fome!
No primeiro momento, ignorei a provocação, mas, depois da terceira vez que ele repetia a mesma frase, recostei-me na parede e, calmamente, com um sorriso irônico no canto da boca, respondi:
- Meu colega, não tenho nada para você comer, mas se quizer algo pra chupar...
Quis não!

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Com o filho no colo a macaca pedia ao caçador para poupar sua vida

Não estou aqui para contar nenhuma estória sensacionalista, mas uma história que, na minha infância, fez escorrer lágrimas pelo meu rosto. Ela foi contada por meu pai, um ex-caçador lá das bandas do Piauí. Ele saiu para caçar juntamente com um amigo. Na mata, separaram-se. Ele, meu pai, ouviu estampidos. Mais tarde, sem nenhum traço de arrependimento, seu amigo lhe narrara esta história que aqui dou alguns retoques, mas não me distancio da realidade:
A mata compacta, abraçada pelo vento, serenava. Os estalos dos galhos das árvores eram ouvidos à distância. O cheiro de jasmim e das plantas agrestes flutuavam no ar. Os animais folgavam: grasnados, sibilos, gorjeios, trinos, bramidos, roncos, zuzunados e ziziados vagavam entre as árvores.
Naquele santuário, de árvore em árvore, brincava distraída uma guariba (tipo de macaco). Levava ela um filhote: estava ensinando-o a viver e livrar-se das perseguições. Mas, como que fantasmogórico, ela viu, apontado para sua direção, um cano de ferro com uma mira. Um caçador carrancudo fazia pontaria e, apoiando o joelho direito no chão, procurava melhor posição. A guariba, como único apelo, mostrava o filhote e, piedosa, deixou escorrer dos olhinhos acesos duas lágrimas. O caçador não se comoveu e, devagarinho, arrochou o gatilho. O estampido foi respondido em eco nas colinas. A guariba, mesmo trespassada por várias esferas de chumbo, continuava apresentando o filhote para o caçador. Na tentetiva de salvar-se, tirava folhas e, mastigando-as, colocava nos furos feitos pelas esferas de chumbo.
Outra vez, o caçador carregava a espingarda bate-bucha (papo amarelo0. Não respeitava os sentimentos da guariba, não ligava para suas súplicas, não respeitava o lar dela e não pensava no pequeno filhote. Mais um disparo assustou a mata. Os animais silenciaram-se. O cheiro de pólvora ficou mais forte. A guariba, mastigando folhas, fazia uma nova tentativa de salvação. O filhote quiçá já estivesse morto. Ela já estava sem forças, pois aquelas esferas quentes tiravam-lhe a vida, à míngua. Mesmo tonta, ela levava folha à boca e, tremendo, gastava os últimos esforços colocando o filhote na frente daquele cano cuspidor de morte.
A mão suja e suada entrou mais uma vez na capanga. Mais ansiedade para a guariba indefesa. A cabacinha de pólvora foi deitada no chão. Nova bucha socada. Um olho colocava na mira o animal que não queria morrer; tinha um filhote para criar. A boquinha mastigando folhas. O filhote suspenso no ar. O gatilho puxado. Outras esferas quentes chocando-se contra o animal, que escurecendo a vista caiu do galho. Rolou sobre os líquens e tocou no solo, todo crivado e com a boca cheia de folhas. As folhinhas colocadas nos furos ainda estavam quentinhas - últimas tentativas de sobrevivência.
O caçador segui à procura de outros animais. Nesse dia, as formigas tiveram um banquete gordo.
Publicado na Revista Nacional. Rio de Janeiro, 01 de julho de 1990

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Vida de professor


Como tinham duas janelas na minha grade de horário, fui para a sala dos professores do Instituto Federal, campus de Floriano (PI).
Uma auxiliar de serviços administrativos, responsável pelos diários de classe, chegou meio esbaforida na porta da sala, pois uma determinada professora tinha faltado, então, com uma voz arrastada, perguntou-me:
- Ei, Antonio José, você pode tampar o "buraco" da professora Fulana de Tal, na sala 3101?
Fiquei intrigado, mas, um pedido assim meio bizarro e inocente, não poderia recusar. Apenas, com um sorriso debochado, eu disse:
- Com todo o prazer!
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