sala VIP

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

vida de professor

Numa tarde escarlate de um dia qualquer de agosto, eu viajava, nesta minha vida cigana, pelo interior do Maranhão num desconfortável micro-ônibus quando fui moldurado numa cena digna de descrição. Na cidade de Bacabal, adentrou no veículo uma mãe acompanhada de três filhos, sendo dois do sexo masculino. A poltrona pequena e ergonometricamente mal projetada foi dividida entre ela e o menino de uns seis anos de idade. A mãe, com as pernas completamente despojadas, segurava a menina no colo. Foi escanchado, numa das pernas, o menino de aproximadamente quatro anos de idade. De chofre, o cobrador entrou no ônibus e, com a pretensão de mostrar autoridade e ser vistos pelos outros passageiros, berrou:

- Da próxima vez, ou a senhora compra duas poltronas ou deixa a metade desses meninos em casa.

A mãe, coitada, toda constrangida, apenas ficou olhando para o assoalho do carro, procurando algum ponto para esconder a humilhação sofrida. De imediato meditei que ele, o cobrador, não entendia nada de matemática: como ela iria deixar a metade dos meninos em casa se eram três.

A viagem reiniciou e a menina de colo e o menino mais novo choravam penosamente. A mãe sacou um peito muxibento e colocou para a pequena sugar. Avaliei que dentro daquele esquálido e caquético corpo não havia leite algum. Pouco tempo depois, os quatro estavam dormindo aninhados e entrelaçados. Na rodoviária de Peritoró, o motorista sentenciou:

- Trinta minutos para o almoço. Desçam todos: o ônibus ficará fechado.

Desci e fiquei na espreita na porta do micro-ônibus: um mal intencionando passageiro poderia subtrair minha bagagem. Ao virar-me, deparei-me com uma cena tipicamente severina: a mãe, de pé, segurando a menina e, em cada perna, entrelaçou-se um dos meninos. Uma cena de varrer, da face de qualquer um, o sorriso. Parece-me que para aquelas crianças ali estava o único ponto de apoio no mundo. Aproximei-me do quarteto, saquei algum dinheiro da carteira e doei para a mãe, recomendando-a:

- Compre algo para as crianças.

A mulher ficou atônita e, paralelamente, deixou escorrer um pouco de felicidade pelos cantos dos olhos. Olhos sofridos e cozidos. Agradecida, saiu a puxar os meninos. Foram os últimos a entrar no veículo. Ainda traziam água mineral, chocolate líquido, fatias de bolo, guaraná, etc. Os meninos comeram até jogar fora. A mãe, o que me deixou admirado, não tirava nada exclusivamente para ela, mas sempre comia as sobras dos meninos e, de quebra, de quando em vez oferecia-me. Ela tinha uma paciência imensurável, pois os meninos ficaram espertos: pulavam, corriam, olhavam o motorista conduzindo o veiculo, brigavam, choravam e, no entanto, ela, cuidadosamente, ajeitava um e outro. Sem alterar a voz. Sem se aborrecer. Determinado momento, a menina começou a vomitar no assoalho, parecia um tubo quebrado jorrando água. Muitos passageiros fizeram cara de nojo, enquanto o vômito, de acordo com o balanço do carro, subia e descia pelo corredor. A mãe massageava a pequena em movimentos suaves e direcionados do pescoço para o umbigo como se quisesse bloquear as investidas antiperistálticas. Depois de um tempo, tudo resolvido. Os meninos, como tinham bebido muito líquido, pediram para fazer xixi. No micro não havia banheiro, portanto a mãe pediu que o motorista parasse as margens da rodovia. Os moleques desceram. Na volta, o mais novo ficou parado na porta do veículo. O motorista acionou o mecanismo que fechava a porta e, portanto, o moleque foi violentamente comprimido. O cobrador, desesperado, alertou o condutor que, habilmente, retornou, sobre os berros do menino, a porta. A mãe, desesperada, passava a mão nas partes machucadas do filho. Nada grave. Só alguns arranhões básicos. Diante de toda aquela celeuma, senti-me culpado: não imaginei que uma simples merenda fosse causar tamanhos transtornos.

Na rodoviária de Caxias, o quarteto desceu. Fiquei a fitá-los pela janela: ninguém para recebê-los. A mãe pareceu-me sem destino. Apenas varria com o olhar, sem convicção, o lugar. O veículo, gemendo e estalando as estruturas, seguiu a viagem e eu, para sempre, perdi de vista a conclusão da crônica.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...