sala VIP

quarta-feira, 28 de abril de 2010

vida de estudante



A Residência Universitária Masculina (RUM), em João Pessoa (PB), era localizada na Rua João da Mata, em Jaguaribe, bem ao lado do Centro Administrativo do Estado. Geralmente, em média, moravam na residência cento e vinte acadêmicos de diversas áreas do conhecimento humano. A casa era fracionada por facções, que viviam desconfortáveis entre si. Os grupos dividiam-se em cachaceiros, homossexuais, religiosos, maconheiros, indiferentes e os “almofadinhas” (que arrotavam o que não tinham).
Certo dia, o estudante de psicologia, Salsicha, que transitava nas facções de cachaceiros e drogados, adoeceu repentinamente em função das farras desregradas e, portanto, o estudante de medicina, Pedro, foi chamado às pressas para consultá-lo. Pedro diagnosticou que se ele não parasse de beber e usar drogas, num período mínimo de 15 dias, com certeza, morreria. Falou um medicanês técnico e coisa e tal e, portanto, convenceu a todos os presentes da gravidade do caso do Salsicha.
No dia seguinte, no apertar da noite, quando chegamos da UFPB – Universidade Federal da Paraíba, Salsicha estava completamente drogado e bêbado. Sorria rasgadamente e pulava descontrolado. Pedro correu para falar com ele e, então, nós também fomos contemplar a cena. Pedro, meio aflito, perguntou-lhe:
- Rapaz, o que você está fazendo?
- Quero só morrer feliz, doutor! Você disse que eu estava com os dias contados, então estou só antecipando o féretro.
Pedro, pedindo-lhe desculpas, complementou:
- Moço, eu estava só brincando! Queria só ver você afastado da cachaça por alguns dias!
De imediato, Salsicha, fechando o sorriso, lamentou-se:
- Pô, doutor, você me ferrou, pois, achando que ia morrer, gastei com cachaça e drogas, somente hoje, o dinheiro que era para eu passar o mês inteiro!

frase de placa


"O passado me revela a construção do futuro"
Teilhard de Chardin

fado



Na minha juventude, incentivado por Expedito França Júnior, um colega do colegial e leitor incondicional, comecei a gostar de ler, pois, gradualmente, de acordo com o meu interesse e interpretação do texto indicado, ele ia me guiando pelas entrelinhas da literatura.
Deixei de ler revistas em quadrinhos e bolsilivros e, então, verticalizei-me nas crônicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Paulo Mendes Campos, Carlos Drummound de Andrade, etc. Quando li “Encontro Marcado” de Fernando Sabino, fiquei fascinado com a história e, portanto, trilhei, sem retorno, pelo imaginário literário nacional e internacional. Li a obra de Jorge Amado, cronologicamente, até “Tocaia Grande”. Na época, um dos livros dele que me provocou pausada reflexão foi “Capitães da Areia”, pois, caso um dia eu fosse pai, segundo internalizei e queria seguir como meta de vida, não me separaria de meu filho. O grupo que aterrorizou Salvador, formado por menores abandonados e marginalizados, composto por Pedro Bala, Volta Seca, Professor, Gato, Dalva, Sem-Pernas, João Grande, Querido-de-Deus e Pirulito, fez uma repaginação nos meus conceitos morais e sociais.
No entanto, a vida não segue um projeto rígido e logicamente pré-determinado por nós, pois, em função de sua surpreendente dinâmica cotidiana, perdemos o rumo do caminho artificial e, naturalmente, somos conduzidos pela soma de decisões de terceiros que se locupleta num todo específico ou geral, de acordo com cada premissa do acaso. A vida é ensoberbecida de resultados imprevisíveis, pois, hoje, vejo-me separado de meu filho, que mora com a minha mãe, por centenas de quilômetros.
Nada é para sempre. Esta é a minha esperança.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

frase de placa


"Quer você acredite que pode ou que não pode fazer uma coisa, você está certo."
Henry Ford

amigo da onça

Na orla marítima de João Pessoa (PB), chamada de Beira Rio, patrocinado pela prefeitura local, acontecia, todos os finais de semana, na popular praia de Cabo Branco, o “Show de Verão” onde os principais expoentes da música brasileira apresentavam-se.
Fomos, eu e um colega de universidade, João Winston, participar de um desses shows. Chegando à praia, escolhemos um “mosqueiro” para comprar a nossa cachaça e um caranguejo para tira-gosto. Existiam barracas padronizadas e bem organizadas na Beira Rio, mas não correspondiam com o nosso “poder de compra”. Barraca padronizada para estudante era muito luxo, pois se pagava cover artístico, garçom, et cetera e tal, e, então, não sobraria nada para a gente investir no goró. A solução, portanto, eram as barraquinhas bem modestas, chamadas de “mosqueiros”.
Pois bem, acomodamo-nos debaixo de um coqueiro. A praia estava pontilhada de gente. De repente, passou uma garotinha lindérrima e, então, Winston, falou um galanteio pra ela que, olhando de soslaio, saiu a sorrir toda faceira e dengosa. O dia promete, pensei. Em seguida, desprovida fisicamente de beleza, uma exibidinha garota, pensando ser a princesa de Mônaco, objurgou Winston:
- Te enxerga magrelo!
Winston, quiçá sem pensar, pois era um indivíduo polido, replicou:
- Não estou falando contigo, coisa feia!
Ela, completamente despudorada, fez um gesto obsceno com o dedo. Winston revidou:
- Soque... (censurado pela linha editorial da página).
Ela, espalmando a mão no ar, disse:
- Ah, eh! Espera aí!
Saiu apressada e nós não demos créditos para aquela tolice. Pouco tempo depois, chegaram correndo atrás da garota, em fila indiana, quatro fisiculturistas. Verdadeiros armários, conhecidos na cidade como leões de chácara, pois fazem segurança de festas e eventos culturais. Eu e Winston derretidos não dávamos para fazer a metade do menor deles. Esbaforida e afobada, a garota apontou agressivamente pra Winston e, escandalosamente, berrou:
- Foi este aqui!!!
Estávamos sentados na areia. Os quatro brutamontes, estrategicamente, posicionaram-se de tal forma que não sobrou espaços para corrermos. Ficamos, portanto, abafados pelas garras dos gigantes. Demonstrando nervosismo, um deles começou:
- Esta garota é minha namorada, esses dois aí são irmãos dela e este outro é cunhado. Ela não é cão sem dono.
Winston tentava se explicar e os caras já estavam agoniados era para batê-lo. O “diálogo” foi ficando tenso e, quando já estava completamente sem argumento e aflito, Winston, desolado, olhou-me suplicando por ajuda.
Calmamente, eu tomava minha biritinha e, paralelamente, analisava o comportamento psicossomático do namorado da garota, pois me pareceu ser o líder do grupo. Os brutamontes massageavam os punhos, chacoalhavam os músculos do peito, socavam uma mão contra a outra e demonstravam fúria no olhar.
A garota inflamava os caras. Insultava-os para que socassem logo o meu colega. Queria saborear violência. Quando os leões de chácara estavam prestes a esfolar o meu colega, então, com parcimônia, entrei naquele angustiante, confuso e nervoso “diálogo”:
- Senhores, por favor! Antecipadamente, peço desculpas a esta jovem e a vocês por alguma grosseria que meu colega tenha dito a ela. Tudo não passou de um mal entendido, pois ele estava falando com outra garota quando ela passava. Nós somos profissionais: ele é estudante de arquitetura e eu sou estudante de engenharia. Estamos aqui para brincar e não para brigar... Sentem-se conosco e vamos tomar uma dose.
Enquanto eu falava, percebi que a ira dos leões ia se diluindo e, então, começaram a afrouxar os músculos, negligenciar os dedos e, portanto, as expressões ameaçadoras foram apagando-se aos poucos. O namorado da garota, por fim, meio encabulado, apontando cada colega, disse:
- Nós também somos profissionais: eu sou pedreiro, Fulano é encanador, Sicrano é auxiliar de pedreiro e Beltrano é carpinteiro.
A garota, percebendo que os caras estavam entrando na conversa, saiu resignada, contrariada e ressentida. O namorado dela sentenciou:
- Rapaz, gostei de você! Vamos com nóis tomar uma dose, logo ali, naquele terceiro coqueiro.
Para afastar os alarves de Winston, segui-os. Tinha meio mundo de gente (como dizem na Paraíba) com os leões de chácara: jovens, crianças, adultos, etc. Parecia um acampamento de desabrigados. Quando chegamos, todo mundo, intrigado, ficou a me olhar. O namorado da garota decretou:
- Esse aqui é colega nosso!
No chão, sentamos em círculo, juntamente com outros “fortões” que tinham ficado. Ligaram um pequeno toca fita cassete, no entanto a fita embuchou. Ela foi retirada e, em seguida, girada em torno de uma caneta. Infelizmente, começou a tocar. Em casa, eu passava o dia sintonizado na Rádio Correio da Paraíba, pois não tinha intervalo comercial e tocava só a nata da MPB. Naquele momento, eu estava escutando uma “música” brega de doer os tímpanos. Música típica de botequim de mercado onde o odor de “chifre” queimado está impregnado. Um deles, olhando-me, disse:
- Linda, né?
Eu disse:
- Oh!
Eu estava sentado, mais ou menos, no terceiro quadrante do círculo. Começou a circular, no sentido horário, uma garrafa de cachaça. O cara bebia uma dose, chicoteava os dedos no ar, estalava a língua na boca e, passando a garrafa pro outro, dizia:
- Boa!
Todos repetiam, como um ritual de grupo, a mesma coisa. Eu já estava era com a boca cheia d’água, doido pra fazer a minha cena também. Finalmente, minha vez. Enchi a boca e, de imediato, senti o fôlego faltar. A cachaça, queimando impiedosamente a boca, dançava entre as bochechas. Senti um vapor fumegando por todos os buracos do crânio: narinas, boca, ouvidos e olhos. Encostei o queixo no peito, fiz uma cara de macho e, contra todos os meus sentidos, empurrei aquela porcaria garganta adentro. A cachaça desceu quadrada e, então, com uma voz sufocada e distorcida, eu falei:
- Boa!
Boa de jogar-se no lixo! Do jeito que ela desceu, meu compadre, acho que era uma misturinha de metanol, querosene de avião, ácido sulfúrico e pimenta malagueta. E olha que eu era tarimbado nas cachaças da Paraíba, pois já tinha bebido Maribondo, São Paulo, Engenho do Meio, Rainha, cana-de-cabeça, etc. Agora, com aquele aroma e sabor, nunca tinha bebido na minha vida.
Os caras começaram a contar umas piadinhas de gosto duvidosas e, com a cara de quem diz xis pra sair sorrindo na foto, eu aproveitava para soprar e massagear a barriga. De chofre, ouvi:
- Vai, Negão, conta a tua piada agora.
Contei uma piada bem sebosa. Daquelas da borra do mau gosto. Os caras sorriram que rolaram na areia. E um deles ainda disse esse disparate:
- Esse aqui é dos nossos!
Alguém gritou:
- Já está na hora do tira-gosto.
Um brutamonte pegou uma vasilha de plástico que estava fermentando no sol e, ao destampá-la, subiu um azedume similar a ovo podre. Eu estava contra a brisa e, portanto, aquele cheiro forte agrediu-me narina adentro e, então, disfarçando, virei o rosto de lado para respirar aliviado.
Uma das jovens, quando viu a “comida”, apressou-se em gritar outra que estava meio afastada do grupo:
- Fulaninha, o melhor vai começar agora!
Sinceramente, foi a primeira vez na minha vida que ouvi dizer que comer “merda” era a melhor hora do dia. Para agradar os caras, pensando em pegar só um pedacinho, fui logo estirando a mão antecipadamente e dizendo:
- Quero só esta pontinha.
- Que nada, Negão, nóis é de fartura! Fulana, trás um prato!
Tô ferrado, pensei. Olhei disfarçadamente e vi João Winston saboreando o caranguejo que nós tínhamos comprado às duras penas.
Quando o litro de cachaça esvaziou, alguém foi logo dizendo que tinham, ainda, mais dois litros. Inventei mil e uma desculpas e, depois de muita insistência, prometendo que retornaria no sábado seguinte, fui liberado. Ao retornar pra sombra do meu coqueiro, Winston, muito irritado, esbravejou:
- Pô, JR, tu é covarde, rapaz. Ficou na farra com os caras que queriam me bater e me deixou aqui sozinho, cara! Que amigo é este?
Ele me chamava de JR que significava José Rodrigues. Eu estava completamente zonzo e sentindo ânsia de vômito. Um mal estar desgraçado. Apenas, sentando-me e recostando-me no coqueiro, balbuciei:
- Compra-me um coco, por favor!
João Winston, até hoje, deve conjecturar que sou um amigo da onça, no entanto, na dura verdade, eu estava era na cova dos leões.

Dedico esta crônica a João Winston Ramalho Leite, um grande colega paraibano dos tempos das farras universitárias.



terça-feira, 13 de abril de 2010

vida de professor



Eu e minha ex-esposa participávamos, no Comércio Esporte Clube de Floriano (PI), de uma festa de formatura de uma determinada turma de Enfermagem da UESPI – Universidade Estadual do Piauí. Certo momento, registrávamos, para a posteridade, fotograficamente a nossa presença no evento. O fotógrafo era tecnicamente profissional e, portanto, sabia todos os macetes para deixar o cliente bem na foto. Num determinado instante das poses, chegou uma senhora toda cheia de arrogância e imperativismo e, portanto, exigiu que as fotos dela fossem feitas antes das nossas. Olhei para a senhora e, quiçá pela postura e má educação dela, achei-a feia pra cacete. Ela começou a fazer a primeira pose dizendo:
- Me deixe bonita e magra nas fotos...
Como eu já estava irritado e, evidentemente, encharcado de água destilada, então, para gargalhadas do fotógrafo, queimei o filme dela:
- A senhora tem que compreender que este rapaz está fazendo fotos e não mágicas ou milagres.

frase de placa



"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos."

Fernando Pessoa

Adeus, Kid.



O capitão Max Emile Frederic Von Stephanitz, em 20 de setembro de 1899, fixou o padrão rácico do cão pastor alemão, oriundo dos pastoris central e sul da Alemanha.
O cão pastor alemão é queridíssimo em todo o mundo e tem como características marcantes: inteligência, velocidade, coragem, robustez, combatividade e resistência às intempéries.
Eu, particularmente, não queria criar um cão, mas, certo dia, a minha ex-esposa disse-me que ganhara um filhote de pastor alemão. A contragosto, fui buscá-lo. Parei em frente ao portão do vizinho que fez a cessão do cão e, em pouco tempo, esquivando-se, disfarçando-se e escondendo o filhote da mãe, ele entregou-me, toda trêmula, uma bolinha de pelo preto que, confortavelmente, coube na palma de minha mão. Não acreditei que fosse um pastor alemão, então, debochadamente sorri e, apertadamente, pronunciei: “pastor alemão”. O homem endureceu a expressão e, deixando transbordar fúria pelos olhos, em forma de estátua, encarou-me agressivamente, então, descolorido e vergonhoso do feito, desfiz o sorriso sórdido e pedi que ele me desculpasse.
Na primeira pernoite separada da mãe, a cadelinha lamuriava-se penosamente. Eu descia os lances de escada da casa e, então, fazia uns carinhos naquele animalzinho indefeso e, em seguida, colocava-a dentro de uma caixinha de sapatos, forrada com pano limpo. No dia seguinte, foi denominada de Kid, em homenagem ao letreiro da caixa.
Em pouco tempo, a cadela crescia e, animadamente, passava o dia brincando com os meninos. De repente, já não se podia mais deixá-la solta, pois ela queria continuar as brincadeiras dantes, mas os meninos não tinham mais porte físico para domá-la.
A Kid era simplesmente apaixonante, pois, como qualquer indivíduo de sua raça, apresentava-se vigilante, fiel e mansa com as crianças. No entanto, para estranhos, era ameaçadora. Determinada noite, adentrei o portão da nossa casa de capacete e, imediatamente, a Kid eriçou os pelos e pareceu-me ficar com o dobro de seu tamanho real, então, tomado pelo medo que me arrepiou todos os pelos do corpo, arranquei, freneticamente, o acessório e pronunciei a frase que a ela me identificava: “Negona safada!”. Ela se recompôs devagarzinho e, portanto, aproximou-se para conferir se o código estava associado à pessoa.
O pastor alemão tem o sistema nervoso equilibrado e, portanto, não se incomoda com shows pirotécnicos ou estampidos de armas de fogo.
Quando eu saia com a Kid para fazer os passeios de rotina, as pessoas, admiradas e amedrontas com a robustez dela, passavam pro outro lado da rua e os cães de menor porte ladravam e corriam desnorteados. Ninguém podia fazer gestos bruscos ou ameaçadores pra mim, pois, de imediato, ela regia. E, diga-se de passagem, tinha muito mais força do que eu. Ela só ficava presa às correntes por conveniência, pois, quando bem entendia, quebrava-as, com o único intuito de brincar com os meninos. Isso não era ameaçador, pois a Kid era protetora, guardiã e uma companheira insuperável.
Pois bem, certo dia, minha ex-esposa comprou uma antena parabólica e, numa baixa coluna de tijolos erguida no quintal, mandou fixá-la. Nesse período, eu trabalhava até as 23:00 h e, então, por três vezes consecutivas, encontrei o portão da casa completamente escancarado. Eu gelava e ficava completamente preocupado com os possíveis ataques que a Kid poderia fazer a quem estivesse abrindo aquele portão. Mas que nada, alguém estava era querendo que ela saísse para poder furtar a antena parabólica. Eu, infelizmente, não desconfiei de nada. De repente, a Kid adoeceu. Fui ao veterinário. Comprei vários medicamentos, mas a Kid continuava, a cada dia, mais debilitada. Alguém jogou veneno pra Kid e, no entanto, o veterinário empurrava vitaminas na coitada e, contraditoriamente, dizia que ela estava muito gorda. Entramos em desesperos e, abusivamente, não importando o valor cobrado, íamos chamá-lo, mas nada dele resolver o problema.
O veterinário viajou para uma cidade circunvizinha de Floriano (PI). Ficamos em pânico. Por telefone, não o localizamos. Ao meio-dia, quando adentrei em casa, a Kid tinha sucumbido e estava estirada no chão só arquejando, com a boca cheia de espuma. Tentei animá-la e, naquele momento, ela me olhou com tanta consternação e tristeza que, no íntimo, emocionou-me, pois ela estava com um semblante de despedida. Tenho certeza, com aquela fisionomia, ela estava dizendo adeus. Apenas, esperava-me para morrer mais aliviada. Entrei em aflição e, tentando enganar-me, corri à casa de um vizinho pedindo ajuda. Quiçá, eu não quisesse ver a Kid morrendo, no entanto, no itinerário pesado e arrastado entre as duas casas, a história dela passava, em flashes, pela minha mente. Não encontrei ajuda. Entrei cabisbaixo em casa e, baixinho, disse: “A Kid morreu!”. A minha ex-esposa e os meninos saíram chorando em alvoroço, mas a Kid já não mais existia. Inocentemente, a sua história acabava-se, em função de um envenenamento covarde, por ser guardiã do nosso patrimônio. A parabólica não foi furtada, pois, depois de um estalo, eu a transferi pro topo da caixa d’água, mas roubaram a vida da kid que era muito mais importante para toda a família. Um dia, quando eu me recuperar do ato pusilânime que cometeram contra ela, irei criar outro cão da raça pastor alemão.
No dia de sua morte, a Kid deixou transluzir um adeus, no entanto, hoje, depois de mais ou menos cinco anos, eu angariei coragem para dizer: “ADEUS, KID”.


terça-feira, 6 de abril de 2010

vida de professor



Numa pequena churrascaria de Zé Doca (MA), fomos, eu e alguns colegas de trabalho do Instituto Federal do Maranhão, professores e técnicos administrativos, jantar e, evidentemente, como era sexta-feira, encarar uma cevadinha fermentada.
A professora de história, Fábia, disse que já tinha um projeto pré-aprovado para visitar tecnicamente a Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato (PI). Fiquei curioso e, portanto, numa atitude de hospitalidade, ofereci, em Floriano (PI), a minha casa como ponto de apoio no dia em que estivessem em trânsito na cidade. Aproveitei o momento e, também, abri o convite a todos os presentes que um dia fossem ao Piauí. Diagonalmente, sem conhecer a cidade, mas com o intuito de menosprezá-la, o técnico de laboratório Edson atravessou o diálogo:
- Floriano é um inferno!!!
Naquele momento, perdendo a elegância vocabular, mandei brasas rubras:
- É por isso que estou convidando os diabos para irem pra lá!

frase de placa



"A sabedoria torna bons os homens. A simulação da sabedoria torna-os péssimos."

Juan Luis Vives

semana santa



Em 1682, pela primeira vez, com duração de oito dias, acertada no Concílio de Nicéia, cujo papa era Silvestre I, foi celebrada a primeira semana santa. A paixão, morte e ressurreição de Cristo são solenizadas nessa semana.
Cumpria-se, fielmente, na minha infância, uma semana santa, no entanto, hoje, respeita-se, ainda, um dia santo – a sexta-feira. Menino folgava, pois, segundo dito não podia apanhar durante “os dias grandes”: quem batesse um pequenino poderia ficar paralítico. Não se comprava nada: era proibido, não sei por quem, pegar em dinheiro. Era proibido correr, gritar, pular, cantar, brincar,... Segundo as crendices populares, tudo era proibido. Ou melhor, quase tudo. Só não era proibido fazer comida, muita comida! Um exagero mesmo! Abarrotava-se a despensa da casa com produtos de época: sardinha, abóbora, bacalhau de terceira, milho, ovos, etc. Não se podia comer carne. Inventava-se um tal jejum que, em sinopse, significava não se comer nada no período da manhã e, no entanto, empanturrar-se no almoço, que, religiosamente, era servido às doze horas. Em ponto. Grande sacrifício!
Lembro-me, com uma nostalgia contida, das viagens que fazíamos para a zona rural. Meu pai alugava o “carro” de seu Pernambuco e, portanto, na maior felicidade, saíamos, completamente apertados e sufocados dentro do “veículo”, rumo ao interior de Floriano (PI). A Belina verde esmeralda desbotada, completamente sambada (desalinhada, bancos furados e amarrados com cordas, lataria enferrujada, vazando gasolina, freios mentirosos, sem buzina, capô amarrado com fios de cobre, portas sem vidro, etc.), deixava-nos cheirando a gasolina, amarrotados, com roupas sujas de graxa e totalmente empoeirados, no entanto, chegávamos ao destino.
Naquela época, meu pai era um eximo contador de anedotas e, portanto, muitas pessoas ruralistas, durante horas e horas, acotovelavam-se para ouvi-lo. E o povo soltava gargalhadas que ecoavam nos capões.
Parece-me, balizado pela vivência, que a semana santa foi instituída para os homens folgarem. Na verdade, as mulheres trabalhavam dia e noite na cozinha e os homens jogavam dominó, baralho, peteca, damas, etc. As mulheres trabalhavam e os homens relaxavam deitados em redes debaixo de árvores frondosas e copadas. As mulheres trabalhavam e os homens contavam piadas e enchiam a cara de cachaça. As mulheres trabalhavam e os homens descansavam... durante oito dias consecutivos.
A geração contemporânea do meu filho não conheceu a semana santa tradicional e, portanto, no futuro, não terá lembranças de uma família unida e alheia a todos os afazeres do cotidiano continuamente durante oito dias. Não tenho religião, no entanto, aquelas férias em família, de uma semana a cada ano, marcaram, indelevelmente, a minha existência terráquea.
Hoje, sentado sobre o meio-fio da vida, olho para trás e vejo que muitas pessoas, bem próximas de mim, foram se cansando e, portanto, deitando-se ao longo do itinerário surpreendente e inexplicável da vida.
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