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terça-feira, 13 de abril de 2010

Adeus, Kid.



O capitão Max Emile Frederic Von Stephanitz, em 20 de setembro de 1899, fixou o padrão rácico do cão pastor alemão, oriundo dos pastoris central e sul da Alemanha.
O cão pastor alemão é queridíssimo em todo o mundo e tem como características marcantes: inteligência, velocidade, coragem, robustez, combatividade e resistência às intempéries.
Eu, particularmente, não queria criar um cão, mas, certo dia, a minha ex-esposa disse-me que ganhara um filhote de pastor alemão. A contragosto, fui buscá-lo. Parei em frente ao portão do vizinho que fez a cessão do cão e, em pouco tempo, esquivando-se, disfarçando-se e escondendo o filhote da mãe, ele entregou-me, toda trêmula, uma bolinha de pelo preto que, confortavelmente, coube na palma de minha mão. Não acreditei que fosse um pastor alemão, então, debochadamente sorri e, apertadamente, pronunciei: “pastor alemão”. O homem endureceu a expressão e, deixando transbordar fúria pelos olhos, em forma de estátua, encarou-me agressivamente, então, descolorido e vergonhoso do feito, desfiz o sorriso sórdido e pedi que ele me desculpasse.
Na primeira pernoite separada da mãe, a cadelinha lamuriava-se penosamente. Eu descia os lances de escada da casa e, então, fazia uns carinhos naquele animalzinho indefeso e, em seguida, colocava-a dentro de uma caixinha de sapatos, forrada com pano limpo. No dia seguinte, foi denominada de Kid, em homenagem ao letreiro da caixa.
Em pouco tempo, a cadela crescia e, animadamente, passava o dia brincando com os meninos. De repente, já não se podia mais deixá-la solta, pois ela queria continuar as brincadeiras dantes, mas os meninos não tinham mais porte físico para domá-la.
A Kid era simplesmente apaixonante, pois, como qualquer indivíduo de sua raça, apresentava-se vigilante, fiel e mansa com as crianças. No entanto, para estranhos, era ameaçadora. Determinada noite, adentrei o portão da nossa casa de capacete e, imediatamente, a Kid eriçou os pelos e pareceu-me ficar com o dobro de seu tamanho real, então, tomado pelo medo que me arrepiou todos os pelos do corpo, arranquei, freneticamente, o acessório e pronunciei a frase que a ela me identificava: “Negona safada!”. Ela se recompôs devagarzinho e, portanto, aproximou-se para conferir se o código estava associado à pessoa.
O pastor alemão tem o sistema nervoso equilibrado e, portanto, não se incomoda com shows pirotécnicos ou estampidos de armas de fogo.
Quando eu saia com a Kid para fazer os passeios de rotina, as pessoas, admiradas e amedrontas com a robustez dela, passavam pro outro lado da rua e os cães de menor porte ladravam e corriam desnorteados. Ninguém podia fazer gestos bruscos ou ameaçadores pra mim, pois, de imediato, ela regia. E, diga-se de passagem, tinha muito mais força do que eu. Ela só ficava presa às correntes por conveniência, pois, quando bem entendia, quebrava-as, com o único intuito de brincar com os meninos. Isso não era ameaçador, pois a Kid era protetora, guardiã e uma companheira insuperável.
Pois bem, certo dia, minha ex-esposa comprou uma antena parabólica e, numa baixa coluna de tijolos erguida no quintal, mandou fixá-la. Nesse período, eu trabalhava até as 23:00 h e, então, por três vezes consecutivas, encontrei o portão da casa completamente escancarado. Eu gelava e ficava completamente preocupado com os possíveis ataques que a Kid poderia fazer a quem estivesse abrindo aquele portão. Mas que nada, alguém estava era querendo que ela saísse para poder furtar a antena parabólica. Eu, infelizmente, não desconfiei de nada. De repente, a Kid adoeceu. Fui ao veterinário. Comprei vários medicamentos, mas a Kid continuava, a cada dia, mais debilitada. Alguém jogou veneno pra Kid e, no entanto, o veterinário empurrava vitaminas na coitada e, contraditoriamente, dizia que ela estava muito gorda. Entramos em desesperos e, abusivamente, não importando o valor cobrado, íamos chamá-lo, mas nada dele resolver o problema.
O veterinário viajou para uma cidade circunvizinha de Floriano (PI). Ficamos em pânico. Por telefone, não o localizamos. Ao meio-dia, quando adentrei em casa, a Kid tinha sucumbido e estava estirada no chão só arquejando, com a boca cheia de espuma. Tentei animá-la e, naquele momento, ela me olhou com tanta consternação e tristeza que, no íntimo, emocionou-me, pois ela estava com um semblante de despedida. Tenho certeza, com aquela fisionomia, ela estava dizendo adeus. Apenas, esperava-me para morrer mais aliviada. Entrei em aflição e, tentando enganar-me, corri à casa de um vizinho pedindo ajuda. Quiçá, eu não quisesse ver a Kid morrendo, no entanto, no itinerário pesado e arrastado entre as duas casas, a história dela passava, em flashes, pela minha mente. Não encontrei ajuda. Entrei cabisbaixo em casa e, baixinho, disse: “A Kid morreu!”. A minha ex-esposa e os meninos saíram chorando em alvoroço, mas a Kid já não mais existia. Inocentemente, a sua história acabava-se, em função de um envenenamento covarde, por ser guardiã do nosso patrimônio. A parabólica não foi furtada, pois, depois de um estalo, eu a transferi pro topo da caixa d’água, mas roubaram a vida da kid que era muito mais importante para toda a família. Um dia, quando eu me recuperar do ato pusilânime que cometeram contra ela, irei criar outro cão da raça pastor alemão.
No dia de sua morte, a Kid deixou transluzir um adeus, no entanto, hoje, depois de mais ou menos cinco anos, eu angariei coragem para dizer: “ADEUS, KID”.


Um comentário:

Anônimo disse...

Caro AJRS, que crônica, cara. Emocionante e cheia de retratos reais. Digo isso porque tive um cachorro, Platão, com quem vive momentos maravilhosos de comunicação e interpretações de gestos os mais variados (conversamos inúmeras vezes e ele fazia cada pergunta com seus olhares). Infelizmente, também, ele foi envenenado covardemente. Perto de minha casa tem uma cachorra que é um clone dele. Toda vez que a vejo me dá uma saudade e uma vontade de ter outro como ele. Parabéns pela crônica. Li todas, são instigantes. Um abraço. Jair Feitosa.

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