Numa tarde fracionada compulsivamente pelos ponteiros do relógio, eu sentia o sabor acre de antibióticos, no ritmo da respiração ofegante, subindo e descendo pela garganta inflamada.
No silêncio curioso e misterioso do apartamento lenitivo e sem esperança, entreguei-me, na tentativa de escapar da dor, a uma furtiva viagem mental metafísica, cujo destino seria um ponto de fuga qualquer onde a angústia não me alcançasse. No mesmo momento, no corredor do hospital, um conselho relâmpago, formado para decidir sobre a proposta do médico de reabrir a minha cirurgia, cruzava idéias, informações e riscos. Como o médico já tinha dito sem eufemismo que eu não resistiria uma viagem até Teresina, o grupo, constituído por Inácio, Jorge Laurentino e minha mãe, o autorizou a reabrir-me, isentando-o, portanto, de qualquer resultado imprevisível que pudesse ocorrer.
Na verdade, segundo viria declarar mais tarde para Inácio, iria reabrir-me somente como justificativa para a minha família que não me deixou morrer à míngua, pois não tinha nenhuma esperança de salvar-me. Acrescentou, também, que na primeira intervenção cirúrgica eu escapara por milagre.
Os resultados dos rotineiros exames (sangue, fezes e urina) solicitados pelo médico tinham acabado de chegar. O centro cirúrgico já estava sendo preparado. Como na primeira vez, a qualquer momento a enfermeira entraria com um aparelho para depilar-me. Numa forma de descontração da tensão pré-cirúrgica, olharia para o meu pênis e balançaria negativamente a cabeça. E eu ficaria sem entender a mensagem, no entanto deixaria um olhar lascinante passear suavemente sobre o corpo dela, e, portanto, com um riso mastigado no canto da boca, repreender-me-ia: “Fique com esse olhar de tarado mal resolvido que eu faço é te castrar, Bem no tronco.” Eu sorriria e ficaria só olhando-a repuxar o meu pênis de um lado para o outro enquanto rasparia os pelos pubianos. Depois, eu soube que ela era irmã da namorada de Inácio. Quiçá se explique a espontaneidade com que ela me tratava. Ele nunca me disse, mas acho que Inácio pediu que ela me desse uma especial atenção.
O ritual pré-cirúrgico seria similar ao primeiro: depois de me vestirem de branco, colocar-me-iam numa maca crepitante e, então, um auxiliar de enfermagem a empurraria pelo corredor do hospital, onde a minha mãe, cheia de incertezas nos olhos, acenar-me-ia; em seguida, só barulhos de portas abafados pelos choros velados das dobradiças, que faziam a minha alma tremer de pavor. O centro cirúrgico, abarrotado de metais brilhantes, luzes intensas e uma parafernália clínica que eu não conhecia, estaria impecavelmente organizado. Num canto qualquer, assistindo ao programa “Fantástico” da Rede Globo, na maior tranqüilidade do mundo, encontrar-se-iam dois médicos, o cirurgião e o anestesista. Como naquele dia a cirurgia seria mais cedo, deveriam estar assistindo a algum programa de auditório, talvez. O anestesista, discutindo política com o cirurgião, prepararia uma seringa com um líquido qualquer e, dirigindo-se para mim, começaria um diálogo fútil. Ao injetar o líquido no meu corpo, pediria para que eu relatasse como ocorrera o acidente. Instantaneamente, eu sofreria um apagão mental e, caso não morresse, seria, mais uma vez, conduzido sincopado ao apartamento, cujo número foi subtraído da minha memória.