sala VIP

sábado, 24 de outubro de 2009

já tive um coração valente



Em João Pessoa, no bairro Jaguaribe, ao lado do Centro Administrativo, cérebro do Estado da Paraíba, ficava encravada a Residência Universitária Masculina (RUM) da Universidade Federal da Paraíba; hoje transferida para dentro do campus e apresenta-se paralela ao Hospital Universitário (HU). Residiam, em média, cento e dez acadêmicos de várias áreas do conhecimento humano. Do outro lado da residência, passava a Rua das Trincheiras que é protegida, de uma profunda depressão geográfica, por uma mureta. Lá em baixo, mostrava-se uma favela.
Numa noite de natureza nervosa: chuva, relâmpagos e trovões que faziam tremer a alma do ser humano, um morador da comunidade, completamente desesperado, adentrou, mais ou menos às 22h, na RUM pedindo ajuda, pois várias casas da favela tinham sido destruídas pelo temporal. De imediato, eu e vários colegas nos predispusemos a ajudar.
Ninguém via a escadaria que dava acesso à favela, pois as águas cobriam uniformemente todos os degraus. O morador, que tinha ido pedi ajuda, guiava-nos. Descemos os degraus em forma de corrente humana: um segurava a mão do outro. As águas engasgavam-se raivosas do nosso atrevimento.
Naquela noite, ao chegar na favela, eu vi um cenário de destruição comparado aos cinematográficos. Seria difícil acreditar que ainda existissem pessoas vivas ali em baixo de tantos escombros. Tinham sido destruídas entre cinco a dez casas. Uma parte da favela ficava no flanco de um morro que, em função da tormenta, desabava em frações imprevisíveis. Pensávamos que toda a comunidade estivesse empenhada no trabalho solidário, mas fomos surpreendidos com vizinhos saqueando as casas que tinham sido destruídas, vizinhos de braços cruzados nas janelas só olhando o sofrimento dos bombeiros, vizinhos que não davam informações sobre as casas que foram soterradas, vizinhos que não sabiam de nada... vizinhos!
Usávamos sandálias comuns que ficaram, na primeira investida, afogadas na lama a mais de 60 cm de profundidade. Continuamos descalços. Uma gostosa e arrepiante gargalhada das nuvens expirou a energia elétrica. Tudo escuro. Os bombeiros ligaram um holofote (lanterna) e o feixe de luz ficava dançando entre os trabalhadores voluntários. Pisei em cerca de arame farpado, louças de vaso sanitário e o não sei o que diga a quatro. O grande receio era cair numa fossa qualquer. De quando em vez, o foco de luz era apontado para o morro. A gente olhava pro morro, que deveria ter entre quinze e vinte metros de altura, e ele agressivamente lançava, devagar e continuamente, centenas de metros cúbicos de lama sobre nós. As árvores sobre o morro estalavam-se agonizantes e, logo, o prenúncio de aumentar a tragédia era eminente.
Levantávamos os pés com dificuldades e, portanto, o trabalho começou a ficar improdutivo: dávamos um passo e, em seguida, caíamos na lama. Os objetos sepultados na lama tornam-se inacreditavelmente pesados. Não havia, para nós principiantes em salvamento, mais nada a fazer. Chegamos no limite da paciência do morro, que, imperiosamente, a qualquer momento poderia nos decretar a sentença de morte. O comandante dos bombeiros, percebendo o perigo que corríamos, agradeceu-nos e pediu que nos afastássemos: estava esperando, a qualquer momento, o deslizamento total do morro. Os bombeiros, bravamente, continuaram desafiando a morte na tentativa de salvar vidas.
Com a lama até quase à altura dos joelhos, fiquei em pé, cruzei os braços e senti o quanto que sou anódino perante a natureza. Recebia lapadas (rajadas) de vento e água na cara que, na noite sinistra, gelavam a coluna vertebral: o corpo todo tremia em convulsão muscular. Abateu-me uma estranha sensação de derrota e impotência humana. Ficamos cabisbaixos e decepcionados por não poder ajudar mais. Já era madrugada: tínhamos trabalhado motivados pela emoção. Eu trabalhei motivado por uma força que não sei explicar. Não sentia dor nem fadiga, apenas trabalhava. Mas, percebi, naquele momento, que contra a natureza não há força de vontade que vença. Conseguimos resgatar duas crianças com vida e o corpo de uma mulher.
Alguns colegas já tinham, sem eu nem perceber, ido embora. Naquele momento, éramos apenas cinco. Quando nos deslocamos rumo ao carreiro que nos conduziria à Rua das Trincheiras, uma pessoa alertou-nos:
- Não vão por aí: estão esperando vocês lá na frente... Serão assaltados. Eu não acho justo: vocês vieram ajudar a gente.
Fiquemos pasmos. Entreolhamo-nos. Mecanicamente, apenas levantamos os ombros e abrimos os braços. O nosso gesto dizia: e agora? A pessoa que nos alertou falou:
- Venham comigo, tem outro caminho por aqui.A dúvida invadiu-me. Estaria aquela pessoa falando a verdade ou estaria nos levando para os bandidos? Os colegas não refletiram sobre isso e, imediatamente, começaram a segui-la. Pulamos uma cerca, passamos por um matagal, subimos uma encosta íngrime e escorregadia e, finalmente, para o alívio geral do grupo, chegamos na avenida. O nosso guia, pelo menos naquela noite, foi uma pessoa do bem

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