sala VIP

quinta-feira, 6 de maio de 2010

estágio de vida



Um galo rouco abriu a cortina policromática da manhã. O dever cotidiano empurrou-me da cama. Meio a contragosto, levantei-me. Os meninos fizeram teatrais cenas de abuso para não abandonarem os lençóis. Levantaram-se e, cambaleando e apoiando-se nas paredes, deslocaram-se para o banheiro. Desci os lances de escadas da casa e coloquei água numa vasilha para aquecer no fogo. Tudo se aparentava rotineiro. No entanto, algum tempo depois, minha ex-esposa, meio contrariada, declarou-me:
- O Jones disse que não quer ir pro colégio, pois quer ser capinador de rua!
Tristemente, fiz uma reflexão: “este menino, com apenas sete anos, já pensa em abandonar o colégio (...)”. Decidi:
- Tudo bem, pode deixá-lo. Hoje, ele não vai pro colégio.
Ela, confusa e cheia de dúvida, ficou a olhar-me incrédula, como se dissesse: “Agora, enlouqueceram os dois, pai e filho”. Como estava liberado do “calvário” colegial, o Jones ficou todo eufórico e serelepe.
No horário de iniciar as aulas no colégio, chamei-o e sentenciei:
- O seu estágio de capinador de rua vai começar agora. Pegue esta faca de mesa e vá cortar todo o capim da frente da casa.
Não se fez de difícil e, animado, começou, curvado para frente, a puxar e cortar o capim. Na região é conhecido como capim-de-burro e nasce abundantemente entre paralelepípedos das ruas. A raiz dele se deriva de tal forma que fica duro pra caramba de ser arrancado. Na frente da casa, era só areia e, portanto, ele limpou até com certa facilidade e desenvoltura. Eu, de longe, acompanhava o epílogo da história. Determinado momento, ouvi:
- Pai, quero tomar café!
Conferi o horário: 9:00 h. Tudo bem, suportou mais tempo do que eu estimara. Autorizei:
- Pode ir!
Fiz um suco com um corante vagabundo de uva e o servi paralelamente com uma fatia de cuscuz. Ele olhou pra mesa e, em seguida, ficou me olhando e, então, interrogou-me:
- Pai, cadê o leite, a margarina e o Nescau?
- Filho, capinador de rua não ganha dinheiro suficiente para comprar esses produtos. Isto aqui é o que ele pode comprar. Se você não quiser comer, retire-se da mesa.
Com certo gosto, comeu fartamente. Depois de alguns minutos, determinei:
- Agora, vá limpar o quintal!
Sem o sorriso inicial, ele saiu surpreso: ponderava que já tinha concluído a tarefa. O capim do quintal é duro pra burro. Ele ficou, naquele momento, agachado. Puxava o capim, tentava cortá-lo e, no entanto, a teimosa gramínea continuava entranhada nas pedras. O suor começou a pipocar no rosto dele. Levantava o bracinho e limpava a testa. Sentou-se no chão e começou a chorar baixinho. Eu, que escondido assistia a tudo, gritei do meu esconderijo:
- Já terminou?
A voz engasgada dizendo não saiu forçada. Formigas emergiram de um buraco qualquer. Rapidamente, soltou a faca e correu pulando e chorando a bater formigas que lhe picavam mãos e pés. Mamãe, que acompanhava a cena, também não resistiu e, meio chorosa, pediu que eu suspendesse o castigo. Falei que ele não estava de castigo, mas fazendo um estágio de vida. Chamei-o. Aproximou-se todo assustado, sujo e com manchas vermelhas nas mãos e nos pés. Pedi que ele fosse olhar uma casinha bem modesta, construída de pau-a-pique, que ficava no início de nossa rua. Depois de algum tempo, retornou. Pedi que sentasse frente-a-frente comigo e, logo, perguntei-lhe:
- O que você viu?
- Uma casinha caindo os pedaços.
- Você acha que as pessoas gostam de morar naquela casa? Elas vivem lá porque não tiveram oportunidade de estudar ou por que não quiseram estudar. E você, rapaz, que tem uma casa bonita, vai de carro para um colégio particular, têm roupas bonitas, alimentação, remédios, vídeo game e quarto particular, diz que não quer mais estudar! Você só tem tudo isso porque eu estudei e, portanto, posso pagar ou comprar para você.
Ficou ouvindo-me atenciosamente, baixou a cabeça e o suor escorreu face abaixo. Coçou a mão, os pés...
- E, então, o que você quer: estudar ou capinar a rua?
- Eu quero ser médico!
Desde aquele dia, eu trabalho com o intuito de formá-lo em medicina.

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