sala VIP

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

As multifacetadas do casamento III



Acordei completamente desnorteado e, sentindo-me em um ambiente não familiar, vi a minha irmã, Janete, que viria a morrer em um acidente automobilístico, sentadinha solitariamente numa cadeira. Como eu fiz um gesto brusco e involuntário com a mão, ela, rapidamente aproximando-se, disse-me: “Calma, você está no hospital.”
Senti uma pitada de felicidade por estar de volta à vida, no entanto, degustei um incomodo gosto de borracha. Fizeram a introspecção de um tubo de borracha, através do meu nariz, para fazer a drenagem interna pós-operatório. A experiência mais azucrinante que já vivi foi aquele sistema de drenagem: a garganta ardia com o atrito da borracha; a tentativa de engolir em seco era recompensada com angustia, dor e impaciência; não podia mudar de posição, pois o tubo provocava-me ânsia de vômito; a sede era incontrolável, mas não podia beber; o suor pesado de antibiótico provocava-me vontade de tossir, mas não podia: os pontos cirúrgicos seriam arrebentados; só conseguia mexer os olhos e um dos braços: o outro estava espetado com soro cheio de medicamentos amarelados.
Durante intermináveis dois dias, fiquei enquadrado na mesma posição. Esse foi o tempo para uma reflexão picotada pela dor, mas, nos momentos de sinapse lógica, lúcida: a minha obra na Terra ainda não estava consumada, pois me faltava um filho para desfilar com os meus genes.
Com a pressa habitual, o médico invadiu o apartamento e, então, ignorando-me, perguntou a minha mãe como eu estava reagindo ao tratamento. Diagonalmente, forcei a minha participação no diálogo e, logo, perguntei-lhe se não podia retirar o sistema de drenagem. Por impulso, aproximou-se da cama e, retirando um esparadrapo colado sobre o meu nariz, puxou, sem avisar-me, o tubo de borracha. Vi, pulverizados no ar, sangue e restos esverdeados de vísceras. A dor foi tão contundente que eu, agarrando-me em um dos braços dele, subi junto com o tubo. Fiquei, meio desacordado, a flutuar, entorpecido pela dor, sobre o leito encharcado de suor. Não gritei. Não fiz escândalos, apenas musicalizei um sonoro gemido que fez eco no meu ser.
No dia seguinte, uma ex-namorada, que dizia, quando eu estava com saúde, adorar-me, foi visitar-me. Colocou um pequeno jarro com uma rosa de plástico sobre uma mesinha, olhou-me de soslaio e, abanou a cabeça negativamente como quem dizia: “Você já era, meu caro!” Não demorou muito, olhou-me novamente com indiferença, saiu meio altiva e nunca mais retornou àquele apartamento hospitalar.
Depois dessa visita, meus pensamentos foram revoluteados novamente: faltavam-me fundamentos convincentes sobre a minha decisão de casamento. Pra mim, a ex-namorada, depois da expressão de indiferença, foi apenas um simulacro lacônico, mas que me projetou em delírios reflexivos. O taciturno cubículo do hospital já não amedrontava mais o meu corpo caquético e de alma confusa.
Olhei pro teto e, decepcionado, meditei em coisas que me fizessem esquecer o ser humano.

6 comentários:

Anônimo disse...

Olá AJRS.

Nesta frase da crônica quando você diz "pois me faltava um filho para desfilar com os meus genes.", me lembrei de Richard Dawkins no seu livro "O Gene Egoísta". Ele fala que nossos genes são egoístas, pois nos utilizam para se propagarem em nossos filhos. Desse ponto de vista nós somos apenas seres que servem ao eogoísmo dos genes que não se preocupam em nada conosco. Somos manipulados por eles. Até o desejo sexual não seria outra coisa que algo criado em nós pelos genes para que possamos reproduzi-los em nossos filhos.

Então, o que você sentiu foi uma vontade comandada por seus genes para retransmiti-los, certo que esse desejo é pessoal, mas não é. Somos bonecos de fantoche dos genes.

Vê se aparece, cara.

Jair Feitosa.

Antonio José Rodrigues disse...

Caro professor, fico contente em ter um leitor como você. Não tive o prazer de ler o livro supracitado, no entanto, a frase em questionamento foi escrita despretensiosamente e fugiu ao meu crivo crítico, pois, com as suas observações, eu a vejo fortemente egocêntrica. Não vou excluí-la para não contrariar a teoria dos genes e, portanto, que fique bem claro: não quero concorrer com genes. Prefiro concorrer com gênios.

Abraços genéticos

Chico Mário Feitosa disse...

Da hora essa crônica, de uma sensibilidade incrivel. Ah, eu como sim peixes, to ficando especialista em prepará-los de todas as maneiras: assado, frito, cozido e até cru.

Abraço,
Chico Mário

Anônimo disse...

vce te odireito de pensar como quizer!

Anônimo disse...

olha meu querido, eu acho que vce nao acredita no amor

Antonio José Rodrigues disse...

Anônimo, não faça julgamentos precipitados. Abraços

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...