
Lembrei-me, numa sinapse de luz cerebral, do surrealista acidente automobilístico que sofri. Segundos antes de o automóvel chocar-se contra uma mureta de concreto de uma rotatória, resolvi, por puro instinto, colocar o cinto de segurança. Eu estava no banco da frente. Carona da agonia. Como foi uma atitude de defesa e reflexo, travei o cinto protegendo apenas o abdômen e, portanto, no instante do choque, fui violentamente arremessado no painel do veículo. Alguém gritava: “O carro vai pegar fogo!”. Mecanicamente, destravei o cinto, abri a porta e, completamente anestesiado, deitei-me na pista, indiferente a tudo. Poderia estar ali ou alhures.
Fui socorrido por populares e, logo, levado para o Hospital Tibério Nunes, em Floriano (PI). Curvado e sobre uma cadeira de rodas, fui deixado. As dores, à medida que o tempo passava, começaram a se revelar. Automaticamente, eu apenas passava a mão no sangue que gotejava do queixo. O joelho direito sangrava numa vazão considerável, mas não doía, e, portanto, era como se eu estivesse olhando aquela cena em outra pessoa. O abdômen e a coluna causavam-me um desconforto irritante. Um médico aproximou-se e, então, perguntou-me se eu tinha plano de saúde. Respondi que não. Ele virou as costas e, faceiramente, saiu a desfilar pelo corredor do hospital. Nunca mais retornou. E eu fiquei na sala de espera do hospital vendo a vida a escorrer pelo corpo abaixo. O meu colega condutor do veículo, como tinha plano de saúde, estava sendo tratado com todos os mimos.
Inácio, um amigo, viu o carro todo amarrotado no balão do anel viário de Floriano (PI) e, então, imediatamente, foi ao hospital. Vendo-me abandonado num canto qualquer, pediu que me conduzissem para um apartamento. Um médico perguntou-lhe: “Quem é que vai pagar?” Ele disse: “É o diabo!! Eu estou mandando é colocá-lo num apartamento.” Na época, Inácio era o gerente do Banco do Estado do Piauí, futuramente incorporado pelo Banco do Brasil.
O cinto de segurança do carro pressionou tanto a minha barriga que, em forma de tatuagem temporária, ficou nela gravado. Fui submetido a uma laparotomia – cirurgia exploratória abdominal. Pois foi, remexeram tudo. Descobriram que o meu intestino estava perfurado e, portanto, extraíram um pedaço dele. Começava, logo, o meu estado de penúria hospitalar, pois, depois da cirurgia fechada, o intestino se recusava a funcionar. Simplesmente, o médico não sabia o que estava acontecendo. Eu sentia como se a minha barriga fosse uma bola de sopro, sempre a crescer. Tomei quase todo o estoque de “Algarol” do hospital, mas nada: o intestino continuava “dormindo”. Em função do inchaço do abdômen, a cirurgia não cicatrizava e, então, começou a supurar. As pessoas diziam, todas reservadas nos corredores, “Começou a apodrecer, não escapa!”.
Os periódicos barulhos das rodas de um carrinho de apoio acusavam a aproximação de uma enfermeira. Dolorosamente protestando através dos rangidos das dobradiças, a porta do apartamento se abria e, portanto, carregando uma bandeja de inox cheia de seringas, algodão, ataduras, iodo, medicamentos, esparadrapos, pinças, etc, etc., entrava uma enfermeira. Ela injetava com uma seringa, várias vezes ao dia, solução de iodo através dos pontos cirúrgicos quebrados no meu umbigo. Eu sentia o líquido subindo e descendo por baixo do couro cabeludo. O meu umbigo ficou deformado pro resto de minha vida. Também, aplicava-me, nos braços, vários tipos de medicamentos e, substituindo o frasco de soro, afastava-se. Compenetrada. Eu ouvia o barulho frenético do carrinho fazendo vidros e metais vibrar se perdendo ao longe. Depois de um período, os meus braços e as minhas mãos incharam e, em função da quantidade de picadas que sofri, então, os medicamentos passaram a ser adicionados no soro.
Como o intestino não respondia, o médico, numa determinada tarde, decidiu que às 17h iria abrir-me novamente, pois, segundo ele, chancelado por mim, eu não resistiria uma viagem até Teresina (PI).
Foi nesse melancólico tempo de espera que fechei os olhos e fiquei aguardando uma luz intensa no fim de um túnel fictício.