sala VIP

quarta-feira, 21 de abril de 2010

amigo da onça

Na orla marítima de João Pessoa (PB), chamada de Beira Rio, patrocinado pela prefeitura local, acontecia, todos os finais de semana, na popular praia de Cabo Branco, o “Show de Verão” onde os principais expoentes da música brasileira apresentavam-se.
Fomos, eu e um colega de universidade, João Winston, participar de um desses shows. Chegando à praia, escolhemos um “mosqueiro” para comprar a nossa cachaça e um caranguejo para tira-gosto. Existiam barracas padronizadas e bem organizadas na Beira Rio, mas não correspondiam com o nosso “poder de compra”. Barraca padronizada para estudante era muito luxo, pois se pagava cover artístico, garçom, et cetera e tal, e, então, não sobraria nada para a gente investir no goró. A solução, portanto, eram as barraquinhas bem modestas, chamadas de “mosqueiros”.
Pois bem, acomodamo-nos debaixo de um coqueiro. A praia estava pontilhada de gente. De repente, passou uma garotinha lindérrima e, então, Winston, falou um galanteio pra ela que, olhando de soslaio, saiu a sorrir toda faceira e dengosa. O dia promete, pensei. Em seguida, desprovida fisicamente de beleza, uma exibidinha garota, pensando ser a princesa de Mônaco, objurgou Winston:
- Te enxerga magrelo!
Winston, quiçá sem pensar, pois era um indivíduo polido, replicou:
- Não estou falando contigo, coisa feia!
Ela, completamente despudorada, fez um gesto obsceno com o dedo. Winston revidou:
- Soque... (censurado pela linha editorial da página).
Ela, espalmando a mão no ar, disse:
- Ah, eh! Espera aí!
Saiu apressada e nós não demos créditos para aquela tolice. Pouco tempo depois, chegaram correndo atrás da garota, em fila indiana, quatro fisiculturistas. Verdadeiros armários, conhecidos na cidade como leões de chácara, pois fazem segurança de festas e eventos culturais. Eu e Winston derretidos não dávamos para fazer a metade do menor deles. Esbaforida e afobada, a garota apontou agressivamente pra Winston e, escandalosamente, berrou:
- Foi este aqui!!!
Estávamos sentados na areia. Os quatro brutamontes, estrategicamente, posicionaram-se de tal forma que não sobrou espaços para corrermos. Ficamos, portanto, abafados pelas garras dos gigantes. Demonstrando nervosismo, um deles começou:
- Esta garota é minha namorada, esses dois aí são irmãos dela e este outro é cunhado. Ela não é cão sem dono.
Winston tentava se explicar e os caras já estavam agoniados era para batê-lo. O “diálogo” foi ficando tenso e, quando já estava completamente sem argumento e aflito, Winston, desolado, olhou-me suplicando por ajuda.
Calmamente, eu tomava minha biritinha e, paralelamente, analisava o comportamento psicossomático do namorado da garota, pois me pareceu ser o líder do grupo. Os brutamontes massageavam os punhos, chacoalhavam os músculos do peito, socavam uma mão contra a outra e demonstravam fúria no olhar.
A garota inflamava os caras. Insultava-os para que socassem logo o meu colega. Queria saborear violência. Quando os leões de chácara estavam prestes a esfolar o meu colega, então, com parcimônia, entrei naquele angustiante, confuso e nervoso “diálogo”:
- Senhores, por favor! Antecipadamente, peço desculpas a esta jovem e a vocês por alguma grosseria que meu colega tenha dito a ela. Tudo não passou de um mal entendido, pois ele estava falando com outra garota quando ela passava. Nós somos profissionais: ele é estudante de arquitetura e eu sou estudante de engenharia. Estamos aqui para brincar e não para brigar... Sentem-se conosco e vamos tomar uma dose.
Enquanto eu falava, percebi que a ira dos leões ia se diluindo e, então, começaram a afrouxar os músculos, negligenciar os dedos e, portanto, as expressões ameaçadoras foram apagando-se aos poucos. O namorado da garota, por fim, meio encabulado, apontando cada colega, disse:
- Nós também somos profissionais: eu sou pedreiro, Fulano é encanador, Sicrano é auxiliar de pedreiro e Beltrano é carpinteiro.
A garota, percebendo que os caras estavam entrando na conversa, saiu resignada, contrariada e ressentida. O namorado dela sentenciou:
- Rapaz, gostei de você! Vamos com nóis tomar uma dose, logo ali, naquele terceiro coqueiro.
Para afastar os alarves de Winston, segui-os. Tinha meio mundo de gente (como dizem na Paraíba) com os leões de chácara: jovens, crianças, adultos, etc. Parecia um acampamento de desabrigados. Quando chegamos, todo mundo, intrigado, ficou a me olhar. O namorado da garota decretou:
- Esse aqui é colega nosso!
No chão, sentamos em círculo, juntamente com outros “fortões” que tinham ficado. Ligaram um pequeno toca fita cassete, no entanto a fita embuchou. Ela foi retirada e, em seguida, girada em torno de uma caneta. Infelizmente, começou a tocar. Em casa, eu passava o dia sintonizado na Rádio Correio da Paraíba, pois não tinha intervalo comercial e tocava só a nata da MPB. Naquele momento, eu estava escutando uma “música” brega de doer os tímpanos. Música típica de botequim de mercado onde o odor de “chifre” queimado está impregnado. Um deles, olhando-me, disse:
- Linda, né?
Eu disse:
- Oh!
Eu estava sentado, mais ou menos, no terceiro quadrante do círculo. Começou a circular, no sentido horário, uma garrafa de cachaça. O cara bebia uma dose, chicoteava os dedos no ar, estalava a língua na boca e, passando a garrafa pro outro, dizia:
- Boa!
Todos repetiam, como um ritual de grupo, a mesma coisa. Eu já estava era com a boca cheia d’água, doido pra fazer a minha cena também. Finalmente, minha vez. Enchi a boca e, de imediato, senti o fôlego faltar. A cachaça, queimando impiedosamente a boca, dançava entre as bochechas. Senti um vapor fumegando por todos os buracos do crânio: narinas, boca, ouvidos e olhos. Encostei o queixo no peito, fiz uma cara de macho e, contra todos os meus sentidos, empurrei aquela porcaria garganta adentro. A cachaça desceu quadrada e, então, com uma voz sufocada e distorcida, eu falei:
- Boa!
Boa de jogar-se no lixo! Do jeito que ela desceu, meu compadre, acho que era uma misturinha de metanol, querosene de avião, ácido sulfúrico e pimenta malagueta. E olha que eu era tarimbado nas cachaças da Paraíba, pois já tinha bebido Maribondo, São Paulo, Engenho do Meio, Rainha, cana-de-cabeça, etc. Agora, com aquele aroma e sabor, nunca tinha bebido na minha vida.
Os caras começaram a contar umas piadinhas de gosto duvidosas e, com a cara de quem diz xis pra sair sorrindo na foto, eu aproveitava para soprar e massagear a barriga. De chofre, ouvi:
- Vai, Negão, conta a tua piada agora.
Contei uma piada bem sebosa. Daquelas da borra do mau gosto. Os caras sorriram que rolaram na areia. E um deles ainda disse esse disparate:
- Esse aqui é dos nossos!
Alguém gritou:
- Já está na hora do tira-gosto.
Um brutamonte pegou uma vasilha de plástico que estava fermentando no sol e, ao destampá-la, subiu um azedume similar a ovo podre. Eu estava contra a brisa e, portanto, aquele cheiro forte agrediu-me narina adentro e, então, disfarçando, virei o rosto de lado para respirar aliviado.
Uma das jovens, quando viu a “comida”, apressou-se em gritar outra que estava meio afastada do grupo:
- Fulaninha, o melhor vai começar agora!
Sinceramente, foi a primeira vez na minha vida que ouvi dizer que comer “merda” era a melhor hora do dia. Para agradar os caras, pensando em pegar só um pedacinho, fui logo estirando a mão antecipadamente e dizendo:
- Quero só esta pontinha.
- Que nada, Negão, nóis é de fartura! Fulana, trás um prato!
Tô ferrado, pensei. Olhei disfarçadamente e vi João Winston saboreando o caranguejo que nós tínhamos comprado às duras penas.
Quando o litro de cachaça esvaziou, alguém foi logo dizendo que tinham, ainda, mais dois litros. Inventei mil e uma desculpas e, depois de muita insistência, prometendo que retornaria no sábado seguinte, fui liberado. Ao retornar pra sombra do meu coqueiro, Winston, muito irritado, esbravejou:
- Pô, JR, tu é covarde, rapaz. Ficou na farra com os caras que queriam me bater e me deixou aqui sozinho, cara! Que amigo é este?
Ele me chamava de JR que significava José Rodrigues. Eu estava completamente zonzo e sentindo ânsia de vômito. Um mal estar desgraçado. Apenas, sentando-me e recostando-me no coqueiro, balbuciei:
- Compra-me um coco, por favor!
João Winston, até hoje, deve conjecturar que sou um amigo da onça, no entanto, na dura verdade, eu estava era na cova dos leões.

Dedico esta crônica a João Winston Ramalho Leite, um grande colega paraibano dos tempos das farras universitárias.



2 comentários:

Salomão Oka disse...

História Fantástica, Antônio José! Eu consegui imaginar cada minuto do seu aperreio!!! Hahahaha! Parabéns! Salomão Oka

AyméeLucaSs disse...

Que descontraçao ler este conto.
Voce passou um bruto aperto e outro nao entendeu nada, rsrsrs
E' horrivel quando a gente faz algo que nao tem nada haver com a gente. Voce descrevendo a cena nos minimos detalhes, deu até para sentar do seu lado e viver a mesma coisa, rsrsrs
Muito bom mesmo!
As expressoes usadas da sua regiao misturada com o seu portugues classico (assim dizendo) da um contraste que chama muita a atençao ao ler!
Beijos

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