sala VIP

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

As multifacetadas do casamento VIII




Ao sair do hospital, o mundo não era mais o mesmo, pois, com tanta riqueza de detalhes, eu nunca tinha observado o andar gracioso, os gestos angelicais e as sinuosas curvas femininas; a cidade policromática enfeitiçava os meus sentidos; sentia uma exótica vontade de gritar aos quatro cantos do mundo: “Estou vivo!”; via tudo com uma curiosidade aguçada de criança e, concomitantemente, saboreava uma leve anestesia espiritual provocada por uma indescritível felicidade.
Pedi ao condutor do veículo que, por favor, diminuísse a velocidade. Imediatamente, meio assustado, perguntou-me se eu estava sentindo dores. Respondi que não, mas fiquei com vergonha de confessar que estava feliz. Apenas, gostaria que aquelas cenas não fugissem tão rápido: era sublime viver aquele momento. Determinadas coisas, a gente não pode reportar a outro homem senão, de canto de olho e com trejeitos no rosto, começa a gozação pejorativa e depreciativa: “Virou boneca, heim!”; “A viadagem tá solta!”; “Eu botava tanta fé em você!”; “Tá doída pra voar, gazela!”; etc, etc, etc... Rótulos cotidianos da educação machista. Queria apenas fazer uma curvatura no parâmetro tempo para que a minha felicidade demorasse mais alguns segundos.
De volta ao novo mundo, a minha decisão estava abalizada: o casamento seria o meu próximo itinerário de vida. Eu não estava com pressa em viver enigmáticas experiências, mas a lógica do meu furtivo mundo seduzia novos paradigmas comportamentais.
Na pequena janela do meu pretérito, onde transitava folgada a minha ignorância sobre a vida, não passava a minha maturidade e, portanto, desconstruí conceitos estilizados que inflavam o caricatural ego.
Ao passar pela farmácia, minha mãe comprou várias caixas de cada medicamento indicado pelo médico. Em casa, o meu quarto estava impecável. A janela aberta soprava liberdade e vida. Como aquela casa era extraordinária! Quantas coisas feéricas cabiam dentro dela e eu, embriagado com torpes eflúvios da vida, nunca tinha percebido: amor, fraternidade, esperança, alegria, coragem, determinação, etc, etc, etc. Tudo transbordando por portas, janelas e frechais. Tudo ao meu alcance!
Depois de cinco dias que tomava os medicamentos, resolvi suspendê-los. Não sentia dores agudas e, portanto, telefonei pro médico e perguntei se, mesmo não sentindo nada, era obrigatório o uso dos remédios que me deixavam com um odor nauseante. O médico, num tom debochado, grosseiro e zombeteiro, disse-me: “Se tu não tá sentindo nada, porra, vai tomar remédio pra quê?” Foi a primeira e última vez que liguei pra ele. Desde aquele prosaico sábado de 1998, nunca mais tomei aqueles antibióticos.


P.S: A minha intenção inicial, inclusive o título dos textos não me deixa mentir, era falar sobre as minhas experiências de casamento até a fase de separação, mas o acidente não deixou o tema vingar e, portanto, fiquei convencido de que ainda não estou emocionalmente credenciado para discorrer sobre o assunto.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

vida de professor


O curso de Enfermagem da UESPI – Universidade estadual do Piauí, campus Floriano, estava iniciando o seu primeiro período. Na época, mais por estatus da profissão (professor universitário) do que por interesse econômico, muitos médicos fizeram um teste simplificado seletivo para ministrar aulas.

Há anos, eu já ministrava aulas na instituição nos cursos de Matemática, Administração, Biologia, Contabilidade, etc. Certa manhã, eu estava encostado na bancada da recepção quando, quase correndo e ofegante, um médico, acompanhado por várias lindas estudantes de enfermagem, ordenou-me gritando:

- Leve o retroprojetor para a sala tal! Agora!

Como recurso moderno, usávamos retroprojetor eletrônico. Não contraí um músculo. Fiquei na mesma pose: uma perna para frente, outra para trás e a cabeça descansando na concha da mão esquerda. Se ele tivesse sido educado, não faria a menor questão de levar o equipamento didático ao local indicado, no entanto, com aquela falta de polidez e postura de divindade para impressionar as garotas, não teria a minha colaboração. Alguns minutos depois, chegou bufando de raiva e, então, me ameaçou:

- Quando não tem emprego, o cara anda atrás de um e de outro. Quando arranja, não quer trabalhar. Vou lhe denunciar. Esse seu empreguinho já era! Preguiça desgraçada, rapaz!!!

Inexpressivamente, continuei imóvel e calado. Depois, pensei: “ele deve estar fazendo a maior farra na sala de aula neste momento.” Coincidentemente, na semana seguinte, eu estava novamente encostado na bancada quando ele chegou e, educadamente, cumprimentou-me:

- Bom dia, professor!

Olhei desconfiado em torno. Não vi ninguém, então respondi:

- Bom dia, doutor!

Fiquei meio intrigado e fui falar com a diretora do campus, na época a professora Ariete Costa Bento. Quando comecei a expor o assunto, ela disse:

- Ah!... Já sei! O doutor chegou aqui fazendo a maior arruaça: pensava que você era do quadro terceirizado de serviços gerais, mas, quando falei que era professor, saiu daqui completamente desarmado e meio envergonhado.



Atitudes de placa


1) O blog "Clichês da Vida", da Lais, está fazendo uma campanha contra a exploração infantil. Cole, por favor, com uma legenda, o selo dela na sua página.




2) O blog "Expresso Elas", da Kátia, está promovendo a campanha "Esquece um livro". Você escolhe um livro, coloca uma mensagem como, por exemplo, "ao ler este livro, deixe-o em um local público para que outra pessoa possa lê-lo" e, então, o "esquece".

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

As multifacetadas do casamento VII



A minha vida oscilava senoidalmente entre o meu corpo e o eterno infinito. Eu já estava quase entregue ao fado, mas, para continuar pingando esperança na vida, preferi acreditar que a reabertura da cirurgia devolver-me-ia para dirigir, em aleatórios cenários reais, mais algumas cenas de minha história.
No apartamento hospitalar, naquele momento, encontravam-se comigo o professor Pedro e Inácio. A minha cirurgia estava marcada para 17 horas. Exatamente, às 16 horas e 30 minutos, sem nenhuma convicção, mas, como se alguém estivesse passando lentamente, em movimentos circulares, algo frio sobre meu abdômen, senti um leve estremecer na barriga e, portanto, pedi que me levassem ao banheiro. Imediatamente, uma fedentina invadiu o quarto. Nem liguei, pois senti um conforto físico e uma paz de espírito indescritíveis. Saí do banheiro meio que flutuando, pois uma leveza insustentável dominava o meu ser. Translucidamente, percebi os colegas, com as fisionomias trancadas, apertando, em desespero, as narinas. Finalmente, eu estava livre da tresloucada dor. O professor Pedro, fazendo humor com a situação, mais tarde me diria: “Eita, negão, tu escapou por uma cagada!” Eu também repaginei o lado cômico do cérebro e respondi: “É melhor escapar assim, professor, do que morrer entupido.”
Nenhum medicamento foi suspenso. A assiduidade da enfermeira continuava implacável. Eu não sentia mais a dor que separava, paulatinamente, o meu corpo da alma, mas agudas dores na barriga que, com o passar dos segundos, adormeciam formigando. Às vezes, dava-me a impressão que havia alguma pinça cirúrgica atravessada no meu intestino. Assim, como se a gente pegasse duas partes de um ferimento e tentasse fechá-lo.
O médico adentrou o apartamento, fez-me umas perguntas rotineiras e, então, determinou: “Amanhã, às 9 horas, você pode ir para casa!” Euforia geral que, no dia seguinte, seria abafada por uma sinistra notícia. Euforia lacônica.
Pouco antes de minha saída do hospital, o médico, sem figuras de linguagem que amenizasse o diálogo, sem comiseração, profetizou: “Sua vida, rapaz, praticamente se acabou. Sendo otimista, acho que você só viverá, no máximo, cinqüenta por cento do que você viveria se não tivesse sofrido o acidente. Você, rapaz, praticamente vai vegetar, pois não poderá mais trabalhar, correr, beber álcool, fumar e nem fazer sexo. Pro resto de seus dias, tomará fortes medicamentos e, portanto, ao sair daqui passe em alguma farmácia e compre estes antibióticos.” Enquanto o médico pacientemente falava e batia levemente o fundo de uma caneta sobre uma mesa, eu comecei a ficar comprimido pela tristeza. O meu coração se contraiu juntamente com a minha alma. O meu corpo se fechou e, de chofre, uma esperança inabalável serviu de anteparo reflexivo contra as frases negativas proferidas por ele e, então, pensei: “O difícil era eu sobreviver a tudo que passei. Depois que me libertei da dor, doutor, voltarei a viver. Você está enganado!” Não disse nada. Apenas, pensei. Paulatinamente, minha fisionomia foi ficando iluminada e eu pude, inclusive, sentir um sorrisinho fugidio descendo sorrateiramente pelos cantos da boca. Interiormente, o momento tornou-se desafiante e jocoso pra mim. Era mais um empecilho que eu deveria superar na vida. Às vezes, o médico se acha semideus e, encarapitado no seu trono de divindade, decreta o apocalipse de indivíduos.
Ele estendeu-me uma receita em escrita rupestre, onde se destacavam quatro tipos de medicamentos. Levantou-se e, como se me ignorasse, disse: “Qualquer coisa, o meu telefone particular está anotado aí no verso.” Depois de ler a receita, respirei profundamente e, logo, comecei a planejar os meus próximos passos.
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